
Em meio a tanta leitura a respeito do
novo CD, entrevistas, vídeos, declarações, etc., acabei deparando-me novamente
com um video-release em que a cantora fala sobre o porquê de seu
novo trabalho trazer à tona suas memórias de menina, pendurada num galho de
árvore, no quintal de sua casa em Santo Amaro da Purificação.
“É porque estou ficando velha, porque eu sinto falta disso,
sinto falta de todos os meus que já se foram... que gostavam de mim... com
muita coragem de dizer que gostavam”.
Nesse momento, sua voz fica
embargada, ela respira fundo e a emoção toma conta por completo. Mostra-se a
menina. Despe-se a cantora, a diva do imaginário popular. Diante da memória do
seu quintal, de sua meninice, naquele instante, é como se nada mais fosse
importante. A emoção tocou a essência do ser. Lembrei-me do meu encontro com
ela, certa vez, e da dedicatória que dizia: “eu sou apenas uma mulher”.
Entendi, finalmente, o que ela quis dizer.
Continuando a entrevista, em dado
momento, ela afirma que não se sente saudosa, não sente falta da menina, pois a
menina está sempre com ela. Sente falta dos seus, mas que, de alguma maneira,
também estão com ela e nela. Veio-me então o “meu” menino, o meu quintal, o meu
sobrado, e a mesma falta que sinto daquela que me ensinou tudo sobre “amor,
festa e devoção”. Pra mim, também, essa falta nunca foi tristeza. Pelo
contrário, sempre me impulsionou a seguir em frente. A presença tão nítida de
minha avó em mim, nos meus gestos, em minhas atitudes frente à vida, tornou sua
morte muito mais amena, bem menos dolorosa. Essa falta também tem me levado
desde então ao meu quintal, onde continuo menino, onde sou mais eu.
De repente, em meio a toda essa
reflexão, salta na tela do computador, uma foto de meu sobrinho, internado há
alguns dias numa UTI infantil, com olhos vivos, atento, brincando embolado
entre esparadrapos, mangueirinhas de soro, agulhas e acessos. A metáfora, por
quem tanto tenho apreço, meteu-se em meio às palavras. Veio-me novamente minha
avó e a mesma capacidade de não deixar a alegria sucumbir à dor.
É claro, que de alguma maneira isso
está conectado com os “meus” de que Bethânia falou. Pois, nossas reações diante
da vida dependem da fonte, da origem, daquilo que nos foi oferecido pelos “nossos”.
E é nessas horas que instintivamente somos capazes de repetir os mesmos gestos,
a mesma forma de lidar com o inesperado. “Tem a ver com o galho”. Tem a ver com
a árvore, com as raízes, com o quintal. Tem a ver, por exemplo, com a nitidez
com que vejo em meu sobrinho, mesmo que recém-nascido, a mesma atitude de não entregar-se
a dor que via em minha avó. Tem a ver com o umbigo. É óbvio, tem a ver com os “meus”.
A perda, a falta dos que se foram, a emoção,
a capacidade de superação, a metáfora, enfim, o livre arbítrio das palavras, acabaram
por me trazer de volta o que disse em entrevista ao Fantástico o também cantor
Erasmo Carlos, dez dias após a morte de seu filho, estreando uma nova turnê de
shows:
“Todos têm sua cota de alegria e de sofrimento. Apenas chegou
a hora. Algum dedo apontou pra mim e falou: ‘chegou a sua hora de sofrer um
pouco’. Eu vivo esse momento. E daqui a pouco minha cota vai melhorar de novo”.
Desde quando assisti à entrevista, fiquei
refletindo sobre essa necessidade de impor-se diante da dinâmica da vida. Superar-se
é sempre uma escolha. Não paralisar diante do difícil, do dolorido, depende
única e exclusivamente de nós mesmos, ainda que, geralmente, tenhamos que tomar
essa decisão em momentos em que talvez o que mais quiséssemos era que tudo
não passasse de um sonho, de uma cena de novela, de um faz-de-conta qualquer.
Não foi sem sofrer, sem chorar, sem se despedaçar, que aquele pai decidiu que o
show tinha que continuar.
Será atávica essa capacidade de
escolher a alegria de viver? Esteve na mãe centenária da cantora, está na
própria meninice da cantora. Esteve em minha avó, está no meu sobrinho. Esteve em
minha irmã e em meu cunhado quando, ainda na sala de parto, não titubearam em
escolher o caminho do amor incondicional. Esteve em mim e nos “meus” quando
vimos pela primeira vez escritas num pedacinho de papel nas mãos daquela pediatra
as palavras “síndrome de Down”.
É lógico que escolher seguir
caminhando não elimina o sofrimento inerente ao caminho. Não é garantia de que
não haverá dor ou tristeza, e, em certos momentos, desânimo. Porém, retirar a “pedra
do caminho”, como diz a canção do Erasmo, é questão de escolha. E, diante da necessidade
que se impõe, desviar sempre pode nos trazer novas paisagens, novas formas de
ver a estrada pela frente. Para nós, naquele corredor da maternidade, onde
passado, presente e futuro se compactaram num átimo, que fez o tempo parar e o chão desaparecer por alguns segundos, a “pedra” imediatamente se
transformou em oportunidade. Oportunidade de nos tornarmos melhores humana e espiritualmente,
de estarmos mais atentos ao diferente, mais consciente das necessidades do
outro. Naquele instante, nos foi dada a chance de sermos melhores pais, avós,
tios, padrinhos, irmãos, primos. E, novamente, o menino, a criança, se colocou acima de qualquer rótulo de perfeição. A frustração momentânea, hoje e a
cada instante percebemos, estava muito mais ligada ao medo do novo do que à
realidade em si, que tem sido muito melhor do que aquela “perfeita” que
idealizamos. Tempo e perfeição ganharam significados muito melhores desde então.
Portanto, tolos são aqueles que
acreditam que passarão pela vida sem sofrer. Ou aqueles que, na ânsia de
proteger os seus, exageram na dose e os incapacitam para as surpresas da vida. Como
diria a cantora, a “vida é real e de viés”. Não há como tornar-se
imune ao sofrimento, a dor, a dúvida. Tudo isso faz parte do pacote. É
importante que estejamos, senão totalmente preparados, ao menos conscientes do
que podemos encontrar pelo caminho. Deus nos livre de só sabermos ser “alegres”,
“eufóricos”, “de bem com a vida”. Isso é falso, é frágil. Aceitar
o sofrimento não é questão de covardia ou de inércia frente ao ruim da vida. Muito
pelo contrário, renegá-lo, ou tentar escondê-lo, é o que pode nos dar a falsa
impressão de que tudo está bem. Quando não está. Desanimar faz parte. Nessas
horas é que precisamos do menino, da criança, cujo compromisso primeiro é com a
alegria de viver. “A arte de sorrir, cada vez que o mundo diz que não”. A
sabedoria está em tomar a dor e seguir com ela, sem se deixar paralisar por
previsões desanimadoras e rótulos preestabelecidos. Carregar a dor nos braços é
domá-la, é dar a ela outras cores. Essa consciência de que o sofrimento faz
parte da vida, torna-o até mais simpático, mais amigo. No fim das contas, as
possibilidades, as alegrias vindas da superação são tantas que a parte dolorosa fica
até meio perdida, esquecida pelo caminho.
Meu avô, que já viveu bastante, e que
faz parte dos “meus” que gostam de mim, com coragem de dizer que gostam, vive insistentemente
repetindo – traído por sua memória vacilante – que “viver é bom, porém, saber
viver é que são elas”. Ele, certamente, não lembra mais de Erasmo e Bethânia, mas
sua memória não falha em afirmar que “é preciso saber viver”, sem esquecer de
que “viver não é preciso”, ou seja, não tem receitas, roteiros, nem fórmulas exatas. Viver se aprende vivendo. E
como dizia o poeta, "eu francamente já não quero nem saber, de quem não vai por
que tem medo de sofrer. Ai de quem não rasga o coração. Esse não vai ter perdão".
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Terminei esse texto, assistindo à vitória
da seleção da Costa Rica sobre a tetracampeã mundial de futebol, Itália. No
chamado grupo da morte, da Copa de 2014, composto pelo azarão Costa Rica e por três seleções campeãs
mundiais – Itália, Uruguai e Inglaterra – todos apostavam que a Costa Rica
seria facilmente eliminada. Só eles não. Resultado, em duas rodadas, é a única
seleção do grupo já classificada para a próxima fase, eliminando todas as
chances da Inglaterra e deixando Itália e Uruguai em situação bem complicada.
Era exatamente dessa história de não acreditar em rótulos, de superação, que eu
estava tentando falar.
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