sexta-feira, 30 de junho de 2017

Viajando no tempo... (Discurso Paraninfo - Curso Integrado Médio Técnico em Química do IFRJ - CRJ - 2016.2)



Boa noite a todos...

Diante da responsabilidade de escrever, falar sobre algo tão importante em nossas vidas, mais uma vez pude comprovar que o difícil, na verdade, é começar (...). Começar a escrever um texto, começar esta graduação, começar a ser alguém nada vida...

Mas peraí, peguei o papel errado! Isso é coisa do século passado, gente. É o meu discurso como orador na minha formatura em 1996, mais de 21 anos atrás. Vocês não eram nem nascido. Ok. Ok. O Vilas já era, mas deixa isso pra lá. Meu Deus, quando vocês vieram ao mundo, o Harry Potter já existia. Sabe que já naquele tempo eu tinha mania de colocar música em tudo. Como diz minha sobrinha: “meu tio é assim, a gente fala uma palavra, ele vai lá e já canta uma música...”

És um senhor tão bonito. Quanto a cara do meu filho. Tempo tempo tempo tempo. És um dos deuses mais lindos. Tempo tempo tempo tempo.

É estranha essa sensação. Por que tudo me parece tão igual... É como se eu tivesse voltado no tempo e me reencontrado com aquele jovem cheio de planos, de sonhos, de coisas a construir... Mas será que é possível viajarmos no tempo? Há quem não acredite nisso. Mas hoje eu vos trago essa possibilidade, convido a todos a me acompanharem nesta viagem. Eu sei viajar no tempo. Por instantes esqueçam a física, a matemática e até mesmo a química. Confie em mim. Hoje eu vos trago a poesia. Ela sim, pode nos transportar no tempo.

Passa o tempo e a vida passa. E eu, de alma ingênua, acredito. No sonho doce infinito. Plenitude, enlevo e graça. Que sem tortura ou revolta. Estou cantando ao luar. Vamos dar a meia-volta. Volta e meia vamos dar.

Prazer, sou Anderson Henriques, tenho 23 anos, formando de Engenharia Química. Hoje eu sou apenas um sonho. Estamos em 1996. Auditório do Prédio Central na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. À minha frente um futuro me aguardando. Há um senhor e uma senhora, alí, sentados. Me parecem mais felizes do que eu. Será que a conquista de hoje é realmente minha ou é deles?

Eu vi o menino correndo, eu vi o tempo, brincando ao redor do caminho daquele menino. Eu pus os meus pés no riacho, e acho que nunca os tirei. O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei...

Prazer, eu me chamo Anderson, devo ter uns 12 anos de idade. Hoje é Natal. Estamos num Sobrado amarelo num subúrbio do Rio. O casal que estava sentado lá naquele auditório, hoje, me trouxe presentes. Um pequeno quadro negro, giz e apagador, e uma caixa azul onde está escrito: “O Pequeno Químico”. Essa noite, eu me sentei, encostado à máquina de costura de minha avó e passei horas misturando coisas em pequenos vidrinhos, mudando cores, gotejando soluções em pedaços de batata que mudavam de cor. Escrevi no quadro coisas aleatórias. Peguei no sono ali mesmo. Acordei no dia seguinte, recolhi uns livros velhos, o quadro e o giz e fui brincar... Sim, brincar de ser professor. E, assim, repeti todos os dias...

Velho, recordo o menino, que resta de mim, sei lá. Cajueiro pequenino, meu pé de Jacarandá...

Quando me dei conta, já era 1997, eu estava dentro de uma bolha de sabão, num laboratório da Escola Técnica Federal de Química. Era uma Semana da Química. Eu, Engenheiro Químico formado, já fazendo mestrado, ouvia de um grupo de alunos do curso técnico, explicações a respeito de como se formavam as bolhas de sabão. Aqueles alunos tinham uma clareza a respeito do que falavam, tinham brilho nos olhos, uma alegria. Aquela escola fervilhava. Auditório lotado. Projetos. Oficinas de poesia. Música. Então eu pensei: é nesse lugar que eu quero continuar a brincadeira com o meu quadro, meu giz e meus vidrinhos e tubos de ensaio!

Então, em 1998, enquanto muitos de vocês nasciam, davam seus primeiros passos, ou balbuciavam as primeiras palavras. Eu nascia professor, nesta escola. Dava meus primeiros passos como professor substituto de Tecnologia da Fermentações da Escola Técnica Federal de Química. Vejam só! Processos Bioquímicos!

Professor de Tecnologia das Fermentações, sim, foi assim que eu nasci para antiga ETFEQ, hoje IFRJ. Como vocês sabem, eu tenho essa petulância, essa ousadia, de ver poesia em tudo. Há os que dizem que sonhos são como tijolos que a gente vai colocando dia-a-dia, um sobre o outro, para construir a felicidade da gente. Meus sonhos são feitos de pequenos quadradinhos verdes. Quando eu entrei nessa escola pela primeira vez, eu levava uma sacola vazia, e naquele dia, eu pus nela o meu primeiro quadradinho verde. E desde então, a cada dia que entro aqui, quando ouço logo lá na entrada, “bom dia, professor” é mais um ladrilho verde que cai na minha sacola, que eu vou colando na parede da minha realização, do meu sonho, da minha felicidade.

Compositor de destinos. Tambor de todos os ritmos. Tempo tempo tempo tempo. Entro num acordo contigo. Tempo tempo tempo tempo. Por seres tão inventivo. E pareceres contínuo. Tempo tempo tempo tempo. És um dos deuses mais lindos. Tempo tempo tempo tempo.

            Bom dia, senhores e senhoritas. Estamos em 2014. Segunda-feira, 7 da manhã, Eu sou Anderson Henriques, o vosso professor de FisQui II. E lá estavam vocês, finalmente, 15 ou 16 anos depois. Depois do turbilhão dos primeiros períodos, chegavam ao quarto. Uma turma enorme, que mal cabia na sala. Logo que entrei, fez-se o silêncio. Porém, este silêncio não durou quase nada. Lá ao fundo, já ouvi a risada solta que iria nos acompanhar durante todo o semestre. Cadê o João Victor Lage? Meu Deus, mas essa turma fala demais, Alda. É, eles falam, riem de tudo, mas daqui a pouco engrenam. Então, em meio aquela risadaria solta, eu lancei pela primeira vez: meu pai, quando éramos criança e estávamos de risinho por tudo, achando graça de tudo, gritava lá da sala: “Dia de riso, véspera de choro...”. Todos quando ouvem isso, não sabem nem porque, mas não veem mais sentido em rir hahhaa. Sempre funciona. Vez ou outra se ouvia a voz da mãe deles, que já àquela altura era mãe deles, “Gente! Silêncio...”. Cadê a Maria? Eu rapidamente entendi: são maratonistas, corredores de longa distância, vão tranquilamente no início e deixam pra disparar no final. E assim foi. A cada Conselho de Classe, eu como coordenador, Maria sempre como representante, ouvíamos as mesmas histórias, essa turma tá achando que é brincadeira, tem um menino lá que ri de tudo. “É, eles são assim mesmo, daqui a pouco acordam...”. Maria Mariana, avisa a turma que esta semana vou aparecer lá pra gente conversar. E era sempre a mesma ladainha. Ao final, levavam aquele susto, mas eles mesmos tinham suas estratégias, se ajudavam. E mais um período se concluía. E outro. E outro...

Peço-te o prazer legítimo. E o movimento preciso. Tempo tempo tempo tempo. Quando o tempo for propício. Tempo tempo tempo tempo. De modo que o meu espírito. Ganhe um brilho definitivo. Tempo tempo tempo tempo. E eu espalhe benefícios. Tempo tempo tempo tempo.

            Como eu disse pra vocês há pouco, cada dia que chego aqui e ouço um aluno me chamar de professor é como se isso fosse aquela carimbada que a gente levava na caderneta da escola todo dia: presente! Mais um dia se confirma, eu fiz a escolha certa. No entanto, ser professor numa instituição pública, num país como o nosso, em que a maioria dos governantes não prima pela Educação, não é tarefa fácil. E todo dia pode ser também um 7 a 1. E diante das peculiaridades de uma escola como essa, há momentos em que a gente precisa fazer escolhas, porque enquanto a gente vai colocando os ladrilhinhos verdes na parede, tem uns e outros que vêm com uma marreta e uma ponteira e tenta arrancá-los. Pra vocês, talvez, sejamos como aquelas bordadeiras nordestinas, sentadas bordando uma colcha, com desenhos lindos, que a gente só vê depois de pronto. A gente expõe a colcha, na maioria das vezes, com o sorriso nos lábios, mas por trás do bordado que se mostra, a trama é muito mais complicada, os fios são muito mais entrelaçados, há muitos nós, remendos. Mas, ao fim e ao cabo, o que importa de fato, o que interessa e é valorizado é a beleza do bordado. Talvez sejamos as bordadeiras da educação e vocês, certamente, o nosso mais belo bordado.

Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista. O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, do fogo das coisas que são. É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão

            Quem me conhece sabe que sou da filosofia clichê, de Facebook, “entre ser feliz e ter razão, eu prefiro ser feliz...” E pra continuar feliz, recolhendo meus quadradinhos verdes para ladrilhar minha felicidade, eu decidi mudar. Depois de 12 anos, sendo professor de FisQui, mesmo trabalhando com gente que eu amava trabalhar, pessoas pelas quais tenho ainda hoje só carinho e gratidão, voltei a ser professor de Tecnologia de Fermentações.

            Então, depois de todos esses anos, me senti inseguro de novo, tive medo de novo. O medo que é comum a toda mudança, o medo do novo. Aquele mesmo medo que tive em 1998, quando entrei em sala de aula pela primeira vez. Só que dessa vez, além de ter sido recebido da melhor forma possível por pessoas incríveis na minha nova equipe, depois de dois anos, quem eu encontro novamente? Sim, vocês todos novamente!

            A vida é incrível mesmo, é belo observar os ciclos, os encontros e reencontros. Nós que nascemos juntos, vocês pra vida, eu para a profissão, nos reencontrávamos naquela sala de aula em que eu novamente recomeçava, voltava ao início, à fase lag de novo. E a cada quinta-feira, em que eu acordava, e ainda inseguro diante de todas as novidades, me lembrava que iria encontra-los, eu me tranquilizava. São eles, os queridos daquela QM141, os da foto com o Cauã. Então, eu entendi que a vida é de fato esse ciclo maravilhoso. A cada 5ª feira, eu me sentava junto de vocês, dessa vez mais pra ouvir do que falar. Pra resgatar, pra aprender de novo. Vocês tornaram essa nova fase muito mais leve, muito mais tranquila. Cada um de vocês foi um novo quadradinho verde que caiu na minha sacola e fui colocando um por um na parede da minha vida.

            Vocês me falam do novo. Vocês me falam da empatia, da naturalidade diante do que o mundo polemiza. Vocês me falam de leveza. A forma como vocês lidam com as diferenças, com a diversidade, é um ensinamento diário pra mim. A capacidade de ajudar, de se preocupar uns com os outros. De respirar fundo e conviver com o diferente, enfim, vocês é que foram professores, ultimamente.

Passa o tempo e eu fico mudo. Ontem ainda a ciranda. Vida à toa, a trova branda. Agora envolvendo tudo... Velho, recordo o menino. Que resta de mim, sei lá. Cajueiro pequenino. Meu pé de jacarandá...
E se continuamos nessa viagem no tempo, eu lhes digo: Eu sou Anderson Henriques, tenho quase 45 anos, já tenho muitos cabelos brancos, dos quais muito me orgulho, não leio mais sem óculos. E falo-vos desde o futuro. Digo-vos que, em muitos aspectos, sou ainda o mesmo menino que naquela noite brincava encostado à máquina de costura, escrevendo no quadrinho de giz e misturando coisas coloridas nos vidrinhos. Sou também aquele jovem com vinte e poucos anos, recém-formado, cheio de sonhos, de esperanças. Sou ainda o mesmo que pela primeira vez entrou nessa escola, entusiasmado, mas inseguro, cheio de medos. Sou todos eles ainda. Mas toda vez que com eles me reencontro, posso dizer a eles, sem medo de errar, valeu a pena. E desde aqui do futuro, se tenho algo a dizer-lhes é: acreditem nos seus sonhos, ouçam o menino ou a menina que vive dentro de vocês, não deixem de ouvir nunca. Voltem sempre a eles para dar satisfação. Vocês são especiais, vocês são únicos e para mim, inesquecíveis. No mais, dou-lhes um conselho:

            Ainda que queiram tirar vocês da fase exponencial do crescimento, ainda que perturbem seu equilíbrio, tenham fé no Principio de Le Chatelier, e reajam sempre a fim de que o equilíbrio seja restabelecido. No mais, é seguir a vida, colocando na sacola mais e mais quadradinhos verdes...

Ainda assim acredito. Ser possível reunirmo-nos.Tempo tempo tempo tempo. Num outro nível de vínculo.Tempo tempo tempo tempo


Amo vocês pra sempre!


terça-feira, 23 de setembro de 2014

Sobre rainhas...


Também pra mim, rezar a Salve Rainha é como ouvir poesia. Aprendi essa oração com minha avó, que gostava muito dela. Ela dizia que devíamos rezar a Salve Rainha nos momentos mais difceis, pois era uma oração muito poderosa. Hoje quando vou caminhando para o trabalho, passo todos os dias por uma linda capelinha dedicada a N. Sra. da Conceição e sempre me lembro dessa oração e consequentemente da minha avó. Rezo quase que instintivamente a Salve Rainha, olho pro Céu, esteja ele azul ou nublado, peço luz para alma de minha avó. Em dias de sorte, encontro pelo caminho uma maria-sem-vergonha ou florzinha lilás qualquer, cor preferida de minha avó, e a singeleza da flor é como um afago daquelas que ela me dava. Assim, desde então a saudade vai amenizando.



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Saudade atávica de Portugal



Tenho uma saudade atávica de Portugal. Hoje, ouvindo canções lusitanas, lembrei-me de Portugal, de Lisboa, de mim sentado à beira do Tejo, do por-do-sol na Ribeira, das gaivotas sobrevoando o Douro. Sinto essa saudade de algo que não vivi, saudade que veio na memória, herança de meus bisavós, de algo que ficou deles em mim, em minhas células, em meu código genético. Lembrei-me do que senti ao chegar no Porto, da incrível sensação de estar voltando àquela terra tão minha, mas que no entanto nunca tinha colocado os pés. Foi como se o desejo de um dia retornar à terrinha, que certamente esteve no coração de S. Manoel e D. Josephina, que partiram de sua pátria, das terras de trás-os-montes, passando dias a cruzar o Atlântico, em busca de uma terra de esperanças, de sonhos, tivesse finalmente sido cumprido. Eu, que não convivi com eles, não tenho lembranças, chorei de uma alegria tão minha, como se de fato voltasse à terra de onde um dia havia partido. Senti como se tivesse finalmente libertado da alma deles a saudade que nem a morte pode findar. O fado me emociona de um jeito, que suponho só um português pode sentir, e eu sinto isso nitidamente. Tenho uma saudade de Portugal que às vezes me chega a doer.

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Eu vi o amor...


Hoje, em meio à correria do meu dia, entre engarrafamentos na Av. Brasil e Linha Vermelha, longa espera para uma consulta de minha mãe no HCE, dei uma passada na casa de minha irmã para ver meus sobrinhos. Tudo muito cotidiano. No entanto, fui pego por uma emoção muito grande quando vi, como tantas outras vezes, minha irmã interagindo com meu sobrinho mais novo. Eu fiquei realmente muito comovido e pude sentir nitidamente a força da relação entre os dois. Vi como ele, apesar dos poucos meses de vida, olha para ela com um amor que sai pelos olhos, que o faz sorrir de alegria, numa felicidade que emana e contagia quem está por perto. Por outro lado, ela também brincando com ele, beijando, acariciando, com um amor que é lindo de se ver. Eu vi a alma dos dois sorrindo uma pra outra. Minha irmã não planejava mais ter filhos, sempre foi uma mãe dedicada à educação das crianças, e quem conhece meus sobrinhos, sabe exatamente do que estou falando. O Cauã nasceu de um reencontro após vinte anos. Desde o primeiro momento em que minha irmã soube, ainda grávida de poucos meses, da possibilidade dele ter Síndrome de Down, ela sempre se mostrou confiante, guerreira e pronta a abraçar essa missão, se essa fosse a vontade Deus pra vida dela. Cauãzinho nos surpreende a cada dia, superando as dificuldades e derrubando todos os mitos a respeito dos bebês com Síndrome de Down. Minha irmã tem sido incansável na dedicação à estimulação tão essencial para o desenvolvimento do meu sobrinho, através das sessões de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, praticamente todos os dias da semana. É óbvio que tudo isso só é possível devido ao suporte e carinho do meu cunhado. Hoje eu pude de fato perceber o quanto é importante o amor e a dedicação dos pais a seus filhos. Tanto pela relação dela com o Cauã quanto pela parceria dos irmãos mais velhos, que ajudam e também demostram enorme carinho pelo caçula. Seus cabelos estavam meio emaranhados, as unhas sem esmalte, a sobrancelha por fazer. Porém, que importância pode ter isso? Qual o tamanho real dessas coisas? Hoje eu vi no olhar trocado entre ela e ele um amor incondicional, uma gratidão que brota dos olhos daquele bebê, como se ele dissesse a todo tempo: "mamãe, obrigado por me fazer o bebê mais feliz desse mundo". Saí desta visita corriqueira, inesperada, com meu espírito enlevado! Obrigado também por isso, irmã. Te amo muito!


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domingo, 14 de setembro de 2014

Ser diferente é exatamente igual

Pela primeira vez, estivemos só nós dois. Eram sete da manhã. Ele veio todo arrumadinho, jardineira jeans, body laranja, tênis. Olhos amendoados que prestavam atenção em tudo. Coloquei-o na cadeirinha atrás do carro. Ele ficou lá quietinho, olhando de vez em quando pra rua, outras vezes fixo pra mim, que dirigia, e vez ou outra olhava pra trás. O samba, daqueles do recôncavo, na voz de Bethânia, que tocava no CD player me fez lembrar de outro menino que há alguns anos atrás dizia: “tio, põe aquela dos camaradas”. Em pouco tempo, com o balanço do carro, ele pegou no sono. Eu fiquei pensando em como tudo é igual, tentando imaginar o que estaria passando pela cabeça daquele menino, com quem estaria sonhando naquele momento? Não houve tempo de lembrar da diferença. Como ele, eu também não me dava conta de que havia um cromossomo a mais. Mas isso de fato deveria ser lembrado? Não. Pois nada muda. Ser diferente é exatamente igual. Dormia ali a mesma inocência, com seu tempo de viver descobertas, de amar, de dar e receber carinho, de sentir dor, de ficar triste, de estar alegre. O diferente sorri e chora, como todo mundo.

         Só agora, enquanto escrevo, me veio à mente o dia em que soubemos que aquele bebê, que pela força do destino, ou mesmo das circunstâncias, nascia em nossa família, era “especial”. Especial era a palavra escolhida então para amenizar ou nos convencer de algo que naquele momento daríamos tudo pra mudar. Lembrei-me da nossa primeira foto em família, da pediatra que insistia em tirar a foto do grupo. Da alegria que parecia inabalável e que durou parcos minutos. Meu cunhado com aquele roupão verde, enquanto o bebê ainda meio ensebado se agitava na incubadora, me dizia: “nossas expectativas se confirmaram, ele tem síndrome de down”. Expectativas?! Como de costume, diante de notícias inesperadas, eu tentei manter a calma e dar a mim mesmo alguns segundos para entender o que estava acontecendo. Enquanto todos olhavam o bebê mais agitado, mais esperto do berçário, felizes, orgulhosos, avó, tia, padrinho, eu fiz parar o tempo ao meu redor e projetei todas as dificuldades, limitações, preconceitos, que ele sofreria. Diante do inesperado, do pouco provável, eu me perguntava o porquê daquilo estar acontecendo conosco. Por que quis o destino nos colocar naquela situação após vinte anos, quando não esperávamos mais um bebê na família, quando já nos sentíamos aliviados de sermos todos "perfeitos". Por quê? 

A resposta a essa pergunta veio muito antes do que eu poderia supor. A alegria que inundava aquele quarto da maternidade, o sorriso no rosto de minha irmã, o amor vazando pelos olhos de meu cunhado, não eram diferentes. Tudo igual às outras quatro vezes que havíamos passado por aqueles momentos, quando as crianças que haviam nascido eram "perfeitas" como sonháramos, numa época em que nem nos preocupávamos em contar cromossomos. A cada um que chegava, irmãos, primos, avós, tios, todos tinham a mesma reação. Eu via ali, diante dos meus olhos, aquela minha gente pondo em prática tudo que havíamos aprendido desde sempre, e não podia ser diferente, pois havíamos apreendido o amor, havia o vínculo que nos marcava como família, de sangue ou não. 

Desde então tudo o que sinto é orgulho de pertencer a essa gente, que caminha comigo, que sonha comigo. Falo obviamente da família, dos irmãos, dos pais, sobrinhos, dos tios, primos, mas falo como o mesmo orgulho também dos amigos, irmãos de alma, que o acaso, destino, circunstâncias, Deus, ou o que seja, colocou no meu caminho.

Eu e ele sozinhos pela primeira vez. Pensei no quanto a vida da gente é surpreendente e dinâmica. Pensei na oportunidade que havíamos recebido. Mas sobretudo me senti feliz, concretamente feliz, sim uma felicidade palpável, essa que tem nos feito experimentar na realidade tudo o que tem acontecido desde que esse menino veio conviver conosco. As experiências da família que está unida em qualquer situação, das minhas irmãs, do quanto conseguimos dar suporte uns aos outros, do quanto conseguimos dosar as nossas diferenças e conseguimos conviver esse amor fraternal de forma tão real, concreta, sem firulas de fotografias. Minha mãe e sua capacidade de lidar com tudo isso, de forma tão sábia, seu amor que está acima de qualquer dificuldade, de sua capacidade de não se permitir contaminar por preconceitos e padrões. Meus sobrinhos tão lindamente humanos, carinhosos, vivendo essa forma tão independente de amor, de família, o quanto eles se tornarão seres humanos melhores, mais antenados às dificuldades e as complexidades do indivíduo e como é possível superar e tornar as coisas verdadeiramente mais fáceis, quando se caminha junto. Do amor que transborda e alinhava minha relação de cumplicidade, companheirismo de uma vida inteira, do quanto isso tudo tem acrescentado ao nosso cotidiano. Enfim, da capacidade de se deixar invadir e transformar-se por essa criança que temos em comum.

Onde ficaram aquelas preocupações todas? Onde foi parar o medo do futuro? Que certezas podemos ter a respeito da vida? Todos somos limitados, de alguma forma. Quais as garantias que temos de que seremos felizes, de que alcançaremos nossos objetivos? O fato de termos um cromossomo a menos nos dá algum passaporte para um futuro fácil, com felicidade, realizações, garantias, sucesso? O que é ser perfeito? Naquele dia, quando ouvi pela primeira vez a frase “está confirmado, nosso Cauã tem Down”, eu tive medo de todas essas perguntas e por intermináveis segundos, o tempo parou, congelou. Hoje, passados seis meses, depois que o tempo voltou ao seu curso, em que vimos vivendo um dia após o outro, em que cada etapa é vencida, cada mito cai por terra. É como se juntos, todos nós, subíssemos no mesmo pódio a todo tempo, mostrando ao mundo que nós temos um troféu, nós ganhamos a mais perfeita coroa de louros. 

Não preciso convencer ninguém de nada, nem a mim mesmo eu preciso. É obvio que não nos foi dada possibilidade de escolha, e o incrível da vida está aí. Não vou me colocar na posição de que se pudesse escolher... pois, de fato, nem sempre nos é dada essa oportunidade. No entanto, quando podemos, que façamos como temos feito, escolhamos ser felizes em fazer do que temos a grande oportunidade de nos tornamos seres humanos melhores, de colocarmos em prática a firmeza de caminharmos juntos, de suportarmo-nos mutuamente. Também não vou dizer que tem sido difícil, pois me parece que depois dele tem sido tão mais prazeroso, tão mais doce, mais leve, viver. Ainda não tenho todas as respostas para as perguntas que me afligiram naquele instante, mas elas também não me afligem mais. O que tenho hoje me sustenta, me fortalece, me fez sentir especial, por ter sido escolhido pela vida para viver essa experiência. Ainda há dúvidas, como sempre houve e sempre haverá. Como disse, não há garantias. Mas isso não é privilégio de quem tem um cromossomo a mais. A incerteza faz parte da vida. No entanto, as certezas ficaram mais claras desde então. Não sei como será o futuro, e nunca haveria de saber. Contento-me com o presente. E esse cromossomo a mais, sem exagero, tem sido o melhor de todos eles.



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sábado, 19 de julho de 2014

Carta para Rubem Alves, esse amigo que nunca me viu.

Querido amigo-que-nunca-me-viu,

“Eu tenho muitos amigos que continuam a gostar de mim, a despeito de me conhecerem. E tenho também muitos amigos que nunca vi”. (Rubem Alves)

Hoje, dia do meu aniversário,  dentre as muitas mensagens recheadas de desejos de felicidade que tilintavam em meu celular, uma amiga, que você também nunca viu, mas que temos em comum, me dizia: “O Rubem Alves faleceu L”. Imediatamente fui tomado por um pesar, uma tristeza, daquelas que a gente só sente quando perde um amigo querido.

Há menos de uma semana, entrei numa livraria para comprar um presente e escolhi um livro seu. Gostei tanto do livro que desisti de dar de presente e fiquei com ele pra mim. Hoje ao saber da notícia de sua morte, corri para abrir o meu presente... e ler suas passagens da alma e pensei: “meu Deus, quanto tem de mim nisso tudo”. Obrigado, pelo lindo presente. 

Desde que li um texto seu pela primeira vez, fiquei encantado com sua forma de olhar o mundo, a visão tão leve e o pensamento preciso a respeito da simplicidade da vida. Quantas então não foram as vezes que você me acompanhou em minhas viagens, nas intermináveis horas dentro de um avião, nas salas de espera da vida. Desde então, ao ler os seus livros, seus pensamentos, é como se eu estivesse conversando com um amigo querido, um amigo mais experiente, muito mais sábio, com um jeito de pensar muito leve e libertador. Obrigado por me fazer entender que "pensar é voar sobre o que não se sabe".

Quantas e quantas vezes, fomos apenas você e eu. No silêncio do meu apartamento, na contraluz da luminária, varamos madrugadas conversando deliciosamente. Você me fazendo rir, me fazendo chorar, enchendo meu coração de esperança na vida, nas pessoas, me ensinando a ser melhor professor, educador, ser humano. Me fazendo sentir privilegiado pela nobreza do meu ofício.

Eu não posso deixar de te agradecer pelo tanto que me ensinou a respeito de catar a poesia que se derrama no dia-a-dia, na simplicidade das coisas, no belo da natureza. Você me ensinou que “os olhos são pintores: pintam o mundo de fora com as cores que moram dentro deles”. Me ensinou a colher o dia como quem colhe morangos vermelhos à beira do abismo. Até da culpa de às vezes ser preguiçoso você me livrou, me dizendo que a “preguiça é a virtude dos seres que estão em paz com vida”. Sempre lembro disso quando tenho umas provas e relatoriozinhos pra corrigir e me apega a isso com toda força.

Sabe, eu vou viver não sei quantos dias e talvez não serei capaz de agradecer o quanto você me ensinou sobre Deus. Você me ajudou a tirá-lo das gaiolas em que eu o havia aprisionado. Você me apresentou um Deus tão mais leve, tão mais Amor, Inteligência e Liberdade. Você me apresentou um Deus que não vive enclausurado em templos, mas anda pelos jardins. Como poderei retribuir isso?

Lembra quando você me disse certa vez que “o sonho de cruzar os mares precede a ciência de construir navios”? Eu entendi desde então que era preciso sonhar sempre, pois o sonho é a força motriz da realidade. Foi também em uma de nossas inúmeras conversas que aprendi a empurrar o balanço da criança que existe em mim com as duas mãos, aproveitando o momento intensamente, vivendo o presente, e deixando pra lá o jornal cheio de notícias desanimadores, que eu lia enquanto empurrava o meu menino. Aprendi mais do que nunca que saber ser criança é a receita da felicidade. 

Lembra do pé de jabuticaba, cheinho de bolotinhas? Ai como eu aproveitei. Como eu fui e voltei naquele pé várias e várias vezes desde então. Lembra de mim chupando os carocinhos da fruta-do-conde com as crianças? Lembra daquela minha azaleia, que nada sabe de química, biologia, física, mas que como nenhum cientista consegue transformar o que absorve da terra e devolver-me como num encanto lindas flores lilases que me fazem lembrar de uma avó querida? Pois, então, ela ainda está por aqui e dá flores cada dia mais lindas. Dia desses, eu plantei alecrim e hortelã, e vingou. Foi você que me ensinou que cultivar jardins era importante. O alecrim anda perfumando minha casa.

Como não lembrar de você diante de folhas amarelas de Ipê caídas lá na estrada que me levava para o encontro com o rio, o velho Chico. E mesmo ao mergulhar no rio, ou estar sentado à beira dele, ou mesmo à sombra de um enorme flamboyant, com aqueles meus amigos que você me ensinou a valorizar e a aproveitar cada momento junto deles, pois “estar junto é divino. Deus mora nos intervalos entre as pessoas que se amam”.

Querido amigo, não fica preocupado comigo. Hoje, também por causa de você, eu respeito meus momentos de tristeza e dor, pois a tristeza também pode ser bela e como você mesmo me ensinou “ostra feliz não faz pérola”. Sei que você não tinha medo da morte, só queria era ficar por aqui, por achar o mundo tão bonito! Mas como você mesmo dizia, “escrever é o meu jeito de ficar por aqui. Cada texto é uma semente. Depois que eu for, elas ficarão”. Você estava certo. Como disse, outra velhinha amiga, também muito sábia, "não morre aquele que deixou na terra a melodia do seu cântico na música de seus versos". Por aqui você plantou jardins. Você ficou. E ficará pra sempre.

Dizem por aí que morrer é passagem, é nascer de novo. Sendo assim, poderemos comemorar nossos aniversários juntos a partir de agora e pra sempre. E, por falar em aniversário, vou ficando por aqui. Ainda estou cheio de coisas pra fazer, vai ter festa amanhã. Só parei para um papinho rápido. Abri o armário e vi que ainda tenho muitos e muitos livros seus para ler. Que bom. Logo, logo, volto e a gente coloca a conversa em dia. No mais, feliz vida eterna pra você. Nos vemos no tempo da delicadeza!


Desse seu amigo que você nunca viu.



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sexta-feira, 20 de junho de 2014

É preciso saber viver, pois viver não é preciso.

Sentei à frente do computador com a ideia de escrever sobre as minhas primeiras impressões a respeito do novo CD de Maria Bethânia, “Meus Quintais”. Porém, há vezes em que as palavras se impõem de tal maneira, que parece até que elas têm vontade própria e se colocam quando e do modo como querem.

Em meio a tanta leitura a respeito do novo CD, entrevistas, vídeos, declarações, etc., acabei deparando-me novamente com um video-release em que a cantora fala sobre o porquê de seu novo trabalho trazer à tona suas memórias de menina, pendurada num galho de árvore, no quintal de sua casa em Santo Amaro da Purificação.

“É porque estou ficando velha, porque eu sinto falta disso, sinto falta de todos os meus que já se foram... que gostavam de mim... com muita coragem de dizer que gostavam”.

Nesse momento, sua voz fica embargada, ela respira fundo e a emoção toma conta por completo. Mostra-se a menina. Despe-se a cantora, a diva do imaginário popular. Diante da memória do seu quintal, de sua meninice, naquele instante, é como se nada mais fosse importante. A emoção tocou a essência do ser. Lembrei-me do meu encontro com ela, certa vez, e da dedicatória que dizia: “eu sou apenas uma mulher”. Entendi, finalmente, o que ela quis dizer.

Continuando a entrevista, em dado momento, ela afirma que não se sente saudosa, não sente falta da menina, pois a menina está sempre com ela. Sente falta dos seus, mas que, de alguma maneira, também estão com ela e nela. Veio-me então o “meu” menino, o meu quintal, o meu sobrado, e a mesma falta que sinto daquela que me ensinou tudo sobre “amor, festa e devoção”. Pra mim, também, essa falta nunca foi tristeza. Pelo contrário, sempre me impulsionou a seguir em frente. A presença tão nítida de minha avó em mim, nos meus gestos, em minhas atitudes frente à vida, tornou sua morte muito mais amena, bem menos dolorosa. Essa falta também tem me levado desde então ao meu quintal, onde continuo menino, onde sou mais eu.

De repente, em meio a toda essa reflexão, salta na tela do computador, uma foto de meu sobrinho, internado há alguns dias numa UTI infantil, com olhos vivos, atento, brincando embolado entre esparadrapos, mangueirinhas de soro, agulhas e acessos. A metáfora, por quem tanto tenho apreço, meteu-se em meio às palavras. Veio-me novamente minha avó e a mesma capacidade de não deixar a alegria sucumbir à dor.

É claro, que de alguma maneira isso está conectado com os “meus” de que Bethânia falou. Pois, nossas reações diante da vida dependem da fonte, da origem, daquilo que nos foi oferecido pelos “nossos”. E é nessas horas que instintivamente somos capazes de repetir os mesmos gestos, a mesma forma de lidar com o inesperado. “Tem a ver com o galho”. Tem a ver com a árvore, com as raízes, com o quintal. Tem a ver, por exemplo, com a nitidez com que vejo em meu sobrinho, mesmo que recém-nascido, a mesma atitude de não entregar-se a dor que via em minha avó. Tem a ver com o umbigo. É óbvio, tem a ver com os “meus”.

A perda, a falta dos que se foram, a emoção, a capacidade de superação, a metáfora, enfim, o livre arbítrio das palavras, acabaram por me trazer de volta o que disse em entrevista ao Fantástico o também cantor Erasmo Carlos, dez dias após a morte de seu filho, estreando uma nova turnê de shows:

“Todos têm sua cota de alegria e de sofrimento. Apenas chegou a hora. Algum dedo apontou pra mim e falou: ‘chegou a sua hora de sofrer um pouco’. Eu vivo esse momento. E daqui a pouco minha cota vai melhorar de novo”.

Desde quando assisti à entrevista, fiquei refletindo sobre essa necessidade de impor-se diante da dinâmica da vida. Superar-se é sempre uma escolha. Não paralisar diante do difícil, do dolorido, depende única e exclusivamente de nós mesmos, ainda que, geralmente, tenhamos que tomar essa decisão em momentos em que talvez o que mais quiséssemos era que tudo não passasse de um sonho, de uma cena de novela, de um faz-de-conta qualquer. Não foi sem sofrer, sem chorar, sem se despedaçar, que aquele pai decidiu que o show tinha que continuar.

Será atávica essa capacidade de escolher a alegria de viver? Esteve na mãe centenária da cantora, está na própria meninice da cantora. Esteve em minha avó, está no meu sobrinho. Esteve em minha irmã e em meu cunhado quando, ainda na sala de parto, não titubearam em escolher o caminho do amor incondicional. Esteve em mim e nos “meus” quando vimos pela primeira vez escritas num pedacinho de papel nas mãos daquela pediatra as palavras “síndrome de Down”.

É lógico que escolher seguir caminhando não elimina o sofrimento inerente ao caminho. Não é garantia de que não haverá dor ou tristeza, e, em certos momentos, desânimo. Porém, retirar a “pedra do caminho”, como diz a canção do Erasmo, é questão de escolha. E, diante da necessidade que se impõe, desviar sempre pode nos trazer novas paisagens, novas formas de ver a estrada pela frente. Para nós, naquele corredor da maternidade, onde passado, presente e futuro se compactaram num átimo, que fez o tempo parar e o chão desaparecer por alguns segundos, a “pedra” imediatamente se transformou em oportunidade. Oportunidade de nos tornarmos melhores humana e espiritualmente, de estarmos mais atentos ao diferente, mais consciente das necessidades do outro. Naquele instante, nos foi dada a chance de sermos melhores pais, avós, tios, padrinhos, irmãos, primos. E, novamente, o menino, a criança, se colocou acima de qualquer rótulo de perfeição. A frustração momentânea, hoje e a cada instante percebemos, estava muito mais ligada ao medo do novo do que à realidade em si, que tem sido muito melhor do que aquela “perfeita” que idealizamos. Tempo e perfeição ganharam significados muito melhores desde então.

Portanto, tolos são aqueles que acreditam que passarão pela vida sem sofrer. Ou aqueles que, na ânsia de proteger os seus, exageram na dose e os incapacitam para as surpresas da vida. Como diria a cantora, a “vida é real e de viés”. Não há como tornar-se imune ao sofrimento, a dor, a dúvida. Tudo isso faz parte do pacote. É importante que estejamos, senão totalmente preparados, ao menos conscientes do que podemos encontrar pelo caminho. Deus nos livre de só sabermos ser “alegres”, “eufóricos”, “de bem com a vida”. Isso é falso, é frágil. Aceitar o sofrimento não é questão de covardia ou de inércia frente ao ruim da vida. Muito pelo contrário, renegá-lo, ou tentar escondê-lo, é o que pode nos dar a falsa impressão de que tudo está bem. Quando não está. Desanimar faz parte. Nessas horas é que precisamos do menino, da criança, cujo compromisso primeiro é com a alegria de viver. “A arte de sorrir, cada vez que o mundo diz que não”. A sabedoria está em tomar a dor e seguir com ela, sem se deixar paralisar por previsões desanimadoras e rótulos preestabelecidos. Carregar a dor nos braços é domá-la, é dar a ela outras cores. Essa consciência de que o sofrimento faz parte da vida, torna-o até mais simpático, mais amigo. No fim das contas, as possibilidades, as alegrias vindas da superação são tantas que a parte dolorosa fica até meio perdida, esquecida pelo caminho.

Meu avô, que já viveu bastante, e que faz parte dos “meus” que gostam de mim, com coragem de dizer que gostam, vive insistentemente repetindo – traído por sua memória vacilante – que “viver é bom, porém, saber viver é que são elas”. Ele, certamente, não lembra mais de Erasmo e Bethânia, mas sua memória não falha em afirmar que “é preciso saber viver”, sem esquecer de que “viver não é preciso”, ou seja, não tem receitas, roteiros, nem fórmulas exatas. Viver se aprende vivendo. E como dizia o poeta, "eu francamente já não quero nem saber, de quem não vai por que tem medo de sofrer. Ai de quem não rasga o coração. Esse não vai ter perdão".

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Terminei esse texto, assistindo à vitória da seleção da Costa Rica sobre a tetracampeã mundial de futebol, Itália. No chamado grupo da morte, da Copa de 2014, composto pelo azarão Costa Rica e por três seleções campeãs mundiais – Itália, Uruguai e Inglaterra – todos apostavam que a Costa Rica seria facilmente eliminada. Só eles não. Resultado, em duas rodadas, é a única seleção do grupo já classificada para a próxima fase, eliminando todas as chances da Inglaterra e deixando Itália e Uruguai em situação bem complicada. Era exatamente dessa história de não acreditar em rótulos, de superação, que eu estava tentando falar.


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