quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Viver é bem do que existir!

"Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe”. Ouvi esta frase de Oscar Wilde, dia desses, e anotei no meu bloco de idéias para usá-la num texto. Ontem à noite, encostado à beira da pia de minha cozinha, tirando a casca de uns ovos cozidos que acabara de preparar, lembrei-me de uma tia minha já falecida. Tia Mariazinha era, na verdade, a irmã caçula de minha avó. Em vésperas de dias de festa, sua missão era descascar ovos de codorna ou pincelar gema de ovo sobre as empadinhas. Fazia aquilo com tanta dedicação, que parecia fazer a coisa mais importante do mundo. Coisa mais rara era ouvirmos a sua voz. Nunca emitia opinião sobre nada. Apenas ouvia. Em dias de comemoração, sempre era aquela confusão lá na casa de minha avó. Coisas de família grande. Todo mundo falando, rindo, mexendo um com outro. Ela ficava lá sentadinha, quietinha. Às vezes ria meio tímida, quando alguém se lembrava de fazer-lhe uma graça. Na maioria das vezes, meu pai fazia isso. Lembro-me de que numa certa época, ela descia pontualmente às seis da tarde, sentava-se numa cadeira junto à mesa, na sala lá de minha casa, e acompanhava à novela. Não assistiu ao capítulo final, lembro-me. Estava internada numa clínica psiquiátrica. Fumava bastante. Talvez fosse esse seu único prazer na vida. Sentava na escadinha da área e tragava seu cigarrinho, com toda calma do mundo. Fico hoje imaginando o que se passava pela sua cabeça naqueles momentos. Morreu de enfisema pulmonar. Na última visita que fizemos no hospital, ela já muito fraca, meio inconsciente, chamava pelo meu pai. Talvez quisesse agradecê-lo pelos raros momentos de alegria. Pelos parcos sorrisos arrancados. Até hoje, é lembrada na família como exemplo do quanto fumar pode fazer mal a alguém. Como se esse tivesse sido o maior mal de sua existência. Lembro-me de uma cena, que me marcou profundamente. Quando minha outra tia-avó, chegando de Brasília, para o sepultamento da irmã, abraçou emocionada a minha avó, que lhe disse: “Dejanira, nossa irmãzinha morreu”. Ao que ela respondeu: “Morreu, Dalila? Essa pobre coitada não chegou nem a viver!”. Ouvi isso e nunca mais esqueci. Pelo menos, durante aqueles vinte e poucos anos de convivência, não me recordo de ver essa minha tia se emocionar com um bom livro, chorar com um bom filme ou dar boas gargalhadas na platéia de uma peça de teatro. Não viajou. Não sonhou com lugares fascinantes. Não recebeu cartas. Não jogou conversa fora com amigos. Não se apaixonou. Não sofreu por amor. Não cuidou de filho são ou doente. Não ‘estragou’ a boa educação dos netos. Não mergulhou em Noronha nem no Rio São Francisco. Não viu golfinhos. Não ouviu boa música. Não apreciou uma enorme lua cheia no céu. Não foi a um mesmo show de Bethânia onze vezes. Não viajou de carro pela Toscana. Não pegou chuva em Paris. Não esteve de frente ao Davi de Michelângelo. Nunca nem soube de sua existência. Não se alegrou com uma azaleia em flor. Não tirou fotos. Não aprendeu a nadar. Não escorregou na cachoeira da Maromba. Não cantou na Rádio Nacional. Não aprendeu novas receitas. Não fez a sobremesa preferida do seu amado. Não montou árvore de Natal. Não rezou. Não fez promessa. Não enfeitou a casa. Quase não chorou, quase não sorriu. Não fez escolhas. Enfim, passou pela vida, sempre à margem. Figurante na vida dos outros, não foi protagonista da própria história. Foi mera coadjuvante. Não teve direito ao papel principal da própria vida. Para mim, porém, sua missão foi além de descascar ovos ou pincelar empadinhas. Sua vida sem vida tem sido o ensinamento mais veemente que viver tem que ser realmente bem mais do que existir. Viver é bem mais do que estar respirando e ter o coração batendo. Viver é tomar para si as rédeas da sua existência. É dedicar-se a um ideal. É amar intensamente. É arriscar-se. “É desenhar sem borracha”, como diria Millôr Fernandes. Gosto de acreditar que ela está feliz lá no ‘tempo da delicadeza’. Deus há de tê-la recompensado. Porque aqui não lhe foi dada a chance de entregar-se à vida!

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