
Pela
primeira vez, estivemos só nós dois. Eram sete da manhã. Ele veio todo
arrumadinho, jardineira jeans, body laranja, tênis. Olhos amendoados que prestavam atenção em tudo.
Coloquei-o na cadeirinha atrás do carro. Ele ficou lá quietinho, olhando de vez
em quando pra rua, outras vezes fixo pra mim, que dirigia, e vez ou outra
olhava pra trás. O samba, daqueles do recôncavo, na voz de Bethânia, que tocava
no CD player me fez lembrar de outro menino que há alguns anos atrás dizia: “tio,
põe aquela dos camaradas”. Em pouco tempo, com o balanço do carro, ele pegou no
sono. Eu fiquei pensando em como tudo é igual, tentando imaginar o que estaria passando
pela cabeça daquele menino, com quem estaria sonhando naquele momento? Não
houve tempo de lembrar da diferença. Como ele, eu também não me dava conta de
que havia um cromossomo a mais. Mas isso de fato deveria ser lembrado? Não. Pois
nada muda. Ser diferente é exatamente igual. Dormia ali a mesma inocência, com seu tempo de viver descobertas, de amar, de dar e receber carinho, de sentir dor, de ficar triste, de estar alegre.
O diferente sorri e chora, como todo mundo.
Só
agora, enquanto escrevo, me veio à mente o dia em que soubemos que aquele bebê, que
pela força do destino, ou mesmo das circunstâncias, nascia em nossa família,
era “especial”. Especial era a palavra escolhida então para amenizar ou nos convencer de algo que
naquele momento daríamos tudo pra mudar. Lembrei-me da nossa primeira foto em
família, da pediatra que insistia em tirar a foto do grupo. Da alegria que parecia inabalável e que
durou parcos minutos. Meu cunhado com aquele roupão verde, enquanto o bebê
ainda meio ensebado se agitava na incubadora, me dizia: “nossas expectativas se
confirmaram, ele tem síndrome de down”. Expectativas?! Como de costume, diante de notícias
inesperadas, eu tentei manter a calma e dar a mim mesmo alguns segundos para
entender o que estava acontecendo. Enquanto todos olhavam o bebê mais agitado,
mais esperto do berçário, felizes, orgulhosos, avó, tia, padrinho, eu fiz parar
o tempo ao meu redor e projetei todas as dificuldades, limitações, preconceitos,
que ele sofreria. Diante do inesperado, do pouco provável, eu me perguntava o
porquê daquilo estar acontecendo conosco. Por que quis o destino nos colocar naquela situação após vinte anos, quando não esperávamos mais
um bebê na família, quando já nos sentíamos aliviados de sermos todos "perfeitos".
Por quê?
A resposta a essa pergunta veio muito antes do que eu poderia supor. A alegria que
inundava aquele quarto da maternidade, o sorriso no rosto de minha irmã, o amor
vazando pelos olhos de meu cunhado, não eram diferentes. Tudo igual às outras
quatro vezes que havíamos passado por aqueles momentos, quando as crianças que
haviam nascido eram "perfeitas" como sonháramos, numa época em que nem nos preocupávamos em
contar cromossomos. A cada um que chegava, irmãos, primos, avós, tios, todos
tinham a mesma reação. Eu via ali, diante dos meus olhos, aquela minha
gente pondo em prática tudo que havíamos aprendido desde sempre, e não podia
ser diferente, pois havíamos apreendido o amor, havia o vínculo que nos marcava
como família, de sangue ou não.
Desde então tudo o que sinto é orgulho de
pertencer a essa gente, que caminha comigo, que sonha comigo. Falo obviamente da
família, dos irmãos, dos pais, sobrinhos, dos tios, primos, mas falo como o mesmo orgulho também
dos amigos, irmãos de alma, que o acaso, destino, circunstâncias, Deus, ou o que
seja, colocou no meu caminho.
Eu
e ele sozinhos pela primeira vez. Pensei no quanto a vida da gente é surpreendente
e dinâmica. Pensei na oportunidade que havíamos recebido. Mas sobretudo me senti feliz,
concretamente feliz, sim uma felicidade palpável, essa que tem nos feito
experimentar na realidade tudo o que tem acontecido desde que esse menino veio
conviver conosco. As experiências da família que está unida em qualquer
situação, das minhas irmãs, do quanto conseguimos dar suporte uns aos outros,
do quanto conseguimos dosar as nossas diferenças e conseguimos conviver esse
amor fraternal de forma tão real, concreta, sem firulas de fotografias. Minha
mãe e sua capacidade de lidar com tudo isso, de forma tão sábia, seu amor que
está acima de qualquer dificuldade, de sua capacidade de não se permitir
contaminar por preconceitos e padrões. Meus sobrinhos tão lindamente humanos,
carinhosos, vivendo essa forma tão independente de amor, de família, o quanto
eles se tornarão seres humanos melhores, mais antenados às dificuldades e as complexidades do
indivíduo e como é possível superar e tornar as coisas verdadeiramente mais
fáceis, quando se caminha junto. Do amor que transborda e alinhava minha
relação de cumplicidade, companheirismo de uma vida inteira, do quanto isso
tudo tem acrescentado ao nosso cotidiano. Enfim, da capacidade de se deixar
invadir e transformar-se por essa criança que temos em comum.
Onde
ficaram aquelas preocupações todas? Onde foi parar o medo do futuro? Que
certezas podemos ter a respeito da vida? Todos somos limitados, de alguma
forma. Quais as garantias que temos de que seremos felizes, de que alcançaremos
nossos objetivos? O fato de termos um cromossomo a menos nos dá algum
passaporte para um futuro fácil, com felicidade, realizações, garantias, sucesso? O que é ser perfeito? Naquele
dia, quando ouvi pela primeira vez a frase “está confirmado, nosso Cauã tem
Down”, eu tive medo de todas essas perguntas e por intermináveis segundos, o
tempo parou, congelou. Hoje, passados seis meses, depois que o tempo voltou ao
seu curso, em que vimos vivendo um dia após o outro, em que cada etapa é
vencida, cada mito cai por terra. É como se juntos, todos nós, subíssemos no
mesmo pódio a todo tempo, mostrando ao mundo que nós temos um troféu, nós
ganhamos a mais perfeita coroa de louros.
Não preciso convencer ninguém de
nada, nem a mim mesmo eu preciso. É obvio que não nos foi dada possibilidade de
escolha, e o incrível da vida está aí. Não vou me colocar na posição de que se
pudesse escolher... pois, de fato, nem sempre nos é dada essa oportunidade. No
entanto, quando podemos, que façamos como temos feito, escolhamos ser felizes
em fazer do que temos a grande oportunidade de nos tornamos seres humanos
melhores, de colocarmos em prática a firmeza de caminharmos juntos, de
suportarmo-nos mutuamente. Também não vou dizer que tem sido difícil, pois
me parece que depois dele tem sido tão mais prazeroso, tão mais doce, mais leve, viver. Ainda não tenho todas as respostas para as perguntas que me afligiram
naquele instante, mas elas também não me afligem mais. O que tenho hoje me
sustenta, me fortalece, me fez sentir especial, por ter sido escolhido pela
vida para viver essa experiência. Ainda há dúvidas, como sempre houve e sempre
haverá. Como disse, não há garantias. Mas isso não é privilégio de quem tem um
cromossomo a mais. A incerteza faz parte da vida. No entanto, as certezas
ficaram mais claras desde então. Não sei como será o futuro, e nunca haveria de
saber. Contento-me com o presente. E esse cromossomo a mais, sem exagero, tem
sido o melhor de todos eles.

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