terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O lixo do natal

Passando pela rua, na manhã seguinte às festas do Natal, o dia nublado, a chuva fina que caía, já contrastavam enormemente com o lindo dia de sol e de céu azul que havia feito na véspera. Desviando-me das montanhas de lixo pelas calçadas, lembrei-me – pra variar – dos idos tempos da infância. Lembrei-me do lixo do natal.


A véspera do Natal tinha sempre aquele clima de espera, de ansiedade. A gente ficava pela rua, brincando, completamente livre dos compromissos da escola – eu sou da época em que 180 dias letivos eram suficientes para “educar” (e muito bem) uma criança –, até que a mãe da gente aparecia no portão ou na janela, e gritava nosso nome, composto, se fosse o caso, anunciando a hora do banho. Em qualquer outro dia das férias, essa era a pior hora, mas na véspera de Natal, não. Era hora de se arrumar para o grande momento. Nesse dia, a gente tomava banho direitinho, esfregava os pés, tirava o cordão de caraca do pescoço, e nem precisava voltar pra lavar a cabeça direito, porque até creme-rinse – era assim que se chamava condicionador naquela época – a gente passava sem a necessidade de um puxão de cabelo ou um tabefe na cabeça, durante a vistoria pós-banho-mal-tomado, comum naqueles tempos. Na casa da vovó, as crianças todas arrumadinhas iam surgindo, com seus cabelinhos penteados, suas marias-chiquinhas repuxando os olhos, a roupa nova, o tênis que ainda machucava o calcanhar, ou a sandália com algodão na ponta. A cada tio ou tia que ia chegando, a gente tentava dar uma disfarçada, mas os olhos já iam rapidamente fazendo a varredura, pra ver se havia e qual era o tamanho do presente, torcendo, obviamente, pra que não fosse roupa. A mesa, lotada de comida, não fazia muita diferença, o interessante mesmo era depois da ceia, quando o vovô, com um soquete de cozinha ou um espremedor de alho, esmigalhava os coquinhos – nozes, amêndoas e avelãs – e a gente comia até se fartar. Após as devidas euforias e decepções com presentes, a gente se juntava num cantinho qualquer da casa, montava o Ferrorama, exibia a boneca que declamava poemas, o Aquaplay, o Playmobil, a maquininha de fazer pipoca, até não aguentar mais e cair no sono por ali mesmo. Criança não se preocupava em desejar coisas boas, em falar palavras bonitas, em ser diferente naquela noite. Simplesmente, guardava o presente e jogava o restante no lixo.

No dia seguinte, a gente acordava cedo e ia pra rua, ansiosa por mostrar o melhor presente que havia ganhado. No lixo de natal, as caixas de papelão, os restos de embalagens pelas calçadas, já denunciavam o que cada um dos amiguinhos traria para a rua. Era só esperar.

Hoje, andando pela calçada, reparei que, no lixo de natal de algumas casas, misturados aos restos de papel de presente, ossos de peru, cascas de nozes e avelãs, já se encontravam – devidamente quebrados, amassados, esquecidos – o amor, a gentileza, a compreensão, a paz e a esperança, aqueles sentimentos todos, devotados na noite anterior. O espírito natalino já havia sido descartado. Do Natal, restaram apenas a azia e a má-digestão, a tortura de ter de trocar presentes, a culpa de ter comido além da conta, o gosto ruim na boca, a ressaca. O vazio.

Natal deveria ser todo dia. E a gente devia era se espelhar nas crianças. Para elas, o dia seguinte ao Natal é até melhor, pois é dia de usufruir as novidades. É dia de viver sem se preocupar com essa história de espírito natalino, de possíveis hipocrisias, de desejos e votos inócuos. Criança não faz esforço pra ser amável, gentil, carinhosa e boa de coração, apenas num dia específico. Criança é o que é. E pronto. A gente devia era fazer como elas. No dia seguinte, a gente devia descer para as ruas e playgrounds do mundo inteiro, compartilhar brinquedos, caros ou baratos, largá-los de lado, brincar de pique, amarelinha, bandeirinha, com os que nada ganharam. Observar insetos, correr atrás de bolinhas de sabão. Reclamar, brigar. Ficar de mal. Ficar de bem. Não guardar mágoas, nem rancores. Perdoar. Ser solidários. Livres de preconceitos. Alegres. Celebrando e aproveitando a dádiva do presente. Quem sabe ainda não dá tempo?

4 comentários:

  1. Ir à rua. Sim, ir à rua seria uma novidade para muitas crianças desses tempos modernos - algumas pensam que a rua do condomínio é a Rua... Tempos em que 180 dias eram suficientes para ensinar a alguém. Interessante. Assustador.
    Um abraço.

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  2. Não há dúvidas, os dias anteriores ao Natal têm uma atmosfera diferente. O dia 25 é muito especial. Mas não dá pra depositar em um único dia todas expectativas de que o mundo vai melhorar, embora intimamente seja o que eu quero! Também percebi no lixo "quebrados, amassados, esquecidos – o amor, a gentileza, a compreensão, a paz e a esperança". Acredito que não devamos nos deixar contaminar com o rancor dos demais, mas tentar viver os outros dias na mesma atmosfera leve do Natal. Quem sabe assim consigamos contagiar outros e assim, como numa transmissão de calor,tds seriam atingidos? É difícil, eu percebo isso a cada ano, mas percebo, também, que esse vem sendo o grande desafio do Natal. Além disso, Jesus Cristo sempre nos ensina como sermos felizes, durante todo ano. Então, mais uma vez, Feliz Natal! (Estamos nas oitavas de Natal, então ainda posso desejar Feliz Natal!) Mariangela

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  3. Lindo texto amigo! Como sempre... Adoro o Natal, bem mais que o Ano Novo, que me traz a sensação de exageros e de pé-na-jaca sem limites, querendo tirar dos últimos segundos daquele ano o que não conseguiu nos outros 364 dias... Gosto do Natal - da noite e do dia seguinte - pelas mesmas coisas que enumerou no texto e por perceber que, por pelo menos 48 horas, o ser humano é capaz de se sentir feliz como uma criança! Dani Brites

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  4. Muito Bom!!! Você analisou o lixo dos adultos de uma forma que nunca havia pensado. A verdadeira face do dia seguinte. Pq não se muda por causa de um dia, vc se muda em um dia por uma causa: o Natal. Gostei muito!!! PHBO

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