terça-feira, 1 de maio de 2012

Uma pitada de sal

             Feriado, essa chuvinha fina que não passa, lembra-me de uma época em que, num dia como esse, eu acordava sem ter muito que fazer, e depois de tomar café da manhã num cantinho de mesa, entre panelas secando depois de ariadas, roupas tiradas da corda, ainda amarrotadas, aquela voz do locutor de programa de rádio AM já invadindo a casa desde cedo, eu ia me esquivando daquela confusão toda e subia pra casa de minha avó. Lá eu ficava às vezes apenas sentado na escadinha da área de serviço, vendo a chuvinha cair, trocando algumas palavras com meu avô, um tanto alheio à passagem do tempo, guardando aquele meu silêncio habitual. Em uma dessas oportunidades, eu ainda muito menino, vi minha avó preparando um mingau e pedi que me ensinasse a fazê-lo. Ela, com sua paciência de sempre, foi me dando todas as dicas. Depois de ensinar-me a receita completa e explicar cada detalhe de como preparar o mingau, ela disse que falaria então o segredo mais importante: “não se esqueça de colocar, por fim, uma pitada de sal!”. Obviamente que eu não consegui entender porque seria necessário acrescentar a uma receita doce uma pitada de sal. E mais ainda porque isso era tão importante. Então eu indaguei: “vó, mas pra que isso?”. Ao que ela muita sabiamente respondeu: “A pitada de sal aguça o sabor doce, a presença do sal torna o doce mais saboroso”. Na época, apenas registrei a informação. No entanto, como em muitas outras vezes, esses momentos de convivência com minha avó voltam à roda, à mente, e a maturidade me faz recriar, reinventar e reler a beleza de suas palavras e ensinamentos.

Minha avó acabara de me ensinar sua filosofia do contraste. A presença do oposto, do antagônico é sempre necessária para valorizar e dar sentido àquilo que efetivamente é a razão de nosso interesse, o objeto principal de nossa atenção, de nossos anseios e desejos. Há pouco tempo, li um texto de Bacherlard que também dizia alguma coisa neste sentido, neste caso, algo sobre a relação essencial entre a sede e a água. A sede é o que dá sentido à água. Só o sedento sabe como ninguém valorizar a água. Ou como diz o dito popular, “o melhor tempero é a fome”. A fome aguça o sabor. A treva traz significado à luz. Dias de chuva tornam os posteriores dias de sol ainda mais belos. A ausência dá sentido à presença. Assim, por exemplo, a saudade se torna coisa boa de sentir quando traz pra dentro da gente o que não se tem mais por fora. É o mecanismo de trazer o longe pra perto. Tornar presente o ausente, concreto o abstrato. Parece que essa é a lógica da vida. A necessidade de contrastes.

No entanto, a gente vive tentando fugir dessa realidade de antagonismos, sempre presentes e tão importantes de serem vivenciados. Parece que não queremos aceitá-la nunca. Não educamos e nem somos educados para ela. Vivemos a ilusão de que a felicidade é apenas um destino a ser alcançado e não uma estrada a ser percorrida. Idealizamos a felicidade como um estado de alma, onde a dor, o sofrimento, a tristeza não são possíveis de serem admitidos. Quando na verdade, é sabido que momentos tristes também constroem uma vida feliz. Fico muito angustiado, por exemplo, quando vejo pais criando seus filhos na infrutífera tentativa de protegê-los das decepções, dos percalços, da dor, e até mesmo da experiência da morte. Como se isso fosse possível. A dor, o sofrimento, a tristeza, obviamente, não são fáceis de serem vivenciados. Mas fato é que eles existem. Não temos como fugir. Lá em casa, graças a Deus, nunca nos foi negado o direito de experimentar a dor. Aprendemos desde cedo que a tristeza, o sofrimento, e mesmo a morte, faziam parte da vida. Minha avó sempre passou por estes percalços de forma muito digna. É claro que sofria, chorava. Mas nunca lamentava. Apenas respeitava, dava o tempo e importância devidos àqueles momentos. Mesmo quando perdeu filhos, não se entregou a ponto de sepultar com eles a sua alegria de viver. Encarava a dor com elegância. Pois, sabia que não era ela a responsável pelo sabor real da vida. A vida é doce, mesmo com suas pitadas de sal, ela sabia.

Por isso, seja essa de fato a grande sabedoria da vida. Entender que ela é feita de contrastes. Os quais são necessários, essenciais. Reais. O que não quer dizer que são fáceis. Mas é preciso vivenciá-los para que a vida imprima seu verdadeiro sentido. Por isso, é importante respeitar a dor, é preciso ter paciência, resignação e saber esperar o tempo dela passar. Porque ela passa. Sempre passa. A gente tem é que aprender a ter a medida certa. Buscar o tão cobiçado equilíbrio. A pitada de sal não pode ser tal que elimine o sabor doce do mingau, ensinava-me minha avó. O sal deve estar na medida certa. Nem mais nem menos. É preciso experimentar o amargo, o acre, afim de que se possa entender e verdadeiramente saborear o doce da vida. Talvez quando me alertou para aquele tal detalhe, minha avó não tivesse a verdadeira dimensão do quanto seu ensinamento seria importante para minha vida. E nem eu mesmo poderia supor.

7 comentários:

  1. Ai sua vó Dalila, dai a origem de tanta sabedoria, dela e sua, obrigada porque atraves da sua poesia, viagens musicas... você mata a fome da minha alma tambem.... grande beijo Cristiane Viana

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  2. Texto sensível, tocante. Vc consegue falar sobre a realidade de uma forma que não machuca, com suavidade. Sempre que leio textos seus que fazem referência à sua avó, fico com vontade de tê-lá conhecido, ela me parece ter sido uma pessoa que fazia a diferença na vida de quem a cercava. Nem todas as pessoas são assim, né! Obrigada sempre pelo prazer de ler suas palavras. Bjs Carla Braga

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    1. Que bom Carlinha! De certa forma, você já conhece minha avó! bjs. Anderson

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  3. Amigo! como sempre os seus textos têm o poder de me emocionar. Quando os leio consigo me transportar para o cenário que você sugere, para o ambiente, os cheiros e os sons. Quase senti o sabor do mingau... e da sabedoria que me inundou. Isso mesmo: vida de contrários que por isso se torna tão rica. O verso tem reverso, o esquerdo tem direito, o de graça tem seu preço e o problema solução - já cantava nosso amigo Pe. Fábio.
    Você enche minha vida de doçura, com sal na medida certa! Te amo meu amigo! Muito!

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    1. Dani, querida... nem precisava assinar. Eu saberia que tinha sido você. Te amo muito também.

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  4. Ah, esqueci de colocar meu nome aí no texto de cima: Dani Brites...hehehe

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