quinta-feira, 26 de julho de 2012

A festa tem que continuar...



Hoje, remexendo fotografias antigas, me deparei com umas fotos que registram um momento que por muitos e muitos anos se repetiu em minha vida. O beijo do vovô e da vovó nas festas de nossa família. Esse era certamente o momento mais esperado de todas as festas. Fosse aniversário dele ou dela, ou aniversário de casamento dos dois, a família inteira aguardava pelo momento do beijo. Era apenas um selinho. Suficiente para que a família toda fosse ao delírio. Era uma gritaria só. Vovó fazia aquela carinha de envergonhada, sorriso de canto de boca, olhar meio sapeca. E o vovô repetia a sequência de beijinhos, pra alegria de todos nós.

Naquele sobrado de nossa infância era assim, tudo era motivo pra festa. A gente se reunia o ano inteiro para comemorar aniversários, semana santa, dia das mães, dia dos pais, bodas, natal, ano novo. Nenhuma data era ignorada. Vovó se alegrava muito com a casa cheia. Minha mãe e minha tia, geralmente, passavam o dia na cozinha, ajudando a vovó a preparar a comida. À noite, a casa ficava lotada. Um entra e sai de bandejas e travessas pela cozinha. Todos ajudando a servir os convidados, enquanto vovó observava atentamente se todos já haviam sido servidos. Nós, as crianças, corríamos o tempo todo por entre as pernas dos adultos, catando um salgadinho aqui, um copo de guaraná acolá. Enquanto criança, minha preocupação era apenas essa, brincar, aproveitar o tempo com meus primos, correr, correr, correr, sem me dar conta do que estavam fazendo os adultos. Até que, de repente, minha mãe dizia, “vamos embora, vai pedir a benção aos seus avós.”. “Poxa, mãe, só mais um pouquinho!”. Eu descia com aquela cara de decepção e anunciava aos meus primos: “Não vou poder mais brincar. Já vou embora!”. Quando eu subia, a área já estava toda arrumada, vovó cortando e embalando pedaços de bolo pra todo mundo levar pra casa. “Bença, vó”. “Deus te abençoe, meu filho!”. Ela dava um beijo em cada um, e a gente se ia. Pra casa. Sem ela. Era ruim demais quando as festas acabavam. Mas, mesmo tristes, nós íamos pra casa, eufóricos, cansados de tanta brincadeira. Felizes. Sabendo que logo, logo, a festa começaria novamente.

Mas a vida vai passando tão depressa, que é quase imperceptível a mudança de papeis. O tempo que nós, crianças de outrora, nos tornamos adultos e passamos a nos divertir nas festas da família, apenas conversando, rindo alto, encarnando uns nos outros, enquanto as crianças continuam correndo por entre as nossas pernas, chega e a gente mal se dá conta. As mesmas brincadeiras, a mesma euforia de sempre. Vovó e vovô continuavam com seus beijinhos. E todos nós, adultos e crianças, de então ou de outrora, continuávamos ansiosos por este momento tão especial da festa. A alegria de minha avó era mais nítida, quanto mais apinhada de gente estivesse a casa. Ela não parava um instante sequer. “Mamãe, senta um pouquinho!”, “Vó, deixa que eu sirvo!”, e ela seguia como se não ouvisse. Sua alegria estava em festejar, em ter a casa cheia de filhos, netos, bisnetos, amigos, vizinhos. Era uma satisfação sem medidas. Assim, a festa seguia por boas horas. Até que se começava a recolher restos de comida, talheres e copos, a limpar mesas e cadeiras. Alguém ajudava a fechar a mesa antiga, recolhendo a parte dobrável que a fazia aumentar de tamanho, e colocando-a no lugar de sempre. Nesse momento, as crianças começavam a perceber que era hora de cessar a brincadeira. As mesmas carinhas de decepção e tristeza. “Não vou pode brincar mais, minha mãe vai embora”. Despedíamo-nos e voltávamos para casa, deixando mais uma vez a casa da vovó, mas levando a mesma alegria contagiante, a mesma sensação que ali, naquele encontro, naquela casa simples, com aquela gente toda reunida, em torno da vovó e do vovô, é que éramos mais felizes.

Quando a vovó partiu, e tivemos que nos despedir dela pela última vez, pensei, durante aquele momento de dor, de saudade, “a festa acabou”. E, desta vez, para sempre. Senti-me novamente como aquele menino, cuja alegria maior estava em chegar à casa dos avós, encontrar com as outras crianças, e brincar, sem se preocupar com mais nada. Veio novamente o mesmo aperto no coração, a mesma tristeza, de quando ouvia a voz de minha mãe me chamando pra ir embora. A festa acabou. Vamos embora pra casa. Sem ela. Mas, dessa vez, não havia a euforia, a certeza de que logo haveria festa novamente. No entanto, essa necessidade que minha avó tinha de celebrar a vida, sempre foi tão contagiante, que já havia se tornando vital também em cada um de nós. Não podíamos mais viver sem isso. A dádiva de tantos anos de convivência, o privilégio de termos aprendido, justamente com ela, a lidar com a morte e a saudade, não nos permitiu paralisar diante do chamado à vida. Naqueles primeiros meses, após sua partida, pareceu-nos entranho a princípio esse sentimento de continuar a festa. Mas pareceu-nos também muito incoerente agir de forma diferente. Ela mesma havia nos ensinado assim. Nós também tínhamos essa mesma alegria em receber, em comemorar, em estarmos juntos. Enfim, somos da raça dos que festejam, dos que celebram a vida. Mesmo respeitando a dor e o sofrimento. Mesmo sentindo saudade. Temos a mesma satisfação em reunir pessoas queridas. Um sentimento que transborda e parece contagiar os que estão por perto. Minha avó nos ensinou assim. Conviver com a saudade, sem deixar que ela minasse nossa alegria de viver. A morte não nos pode arrancar isso. A vida sempre nos convida a continuar. A vida impera, ela sempre nos demostrou isso. Logo compreendemos, então, que esta era a maior homenagem que poderíamos render a ela. Mantermos viva em nós a sua alegria pelo dom de estar viva.

Neste último fim semana, ao reunir minha família e tantos amigos queridos para comemorar mais um aniversário, foi que pude perceber o que sou, de fato, da linhagem daquela senhora, que tanto amava reunir a família, que tanto amava celebrar a vida. Pude me dar conta do quanto sua vida de dedicação e amor a todos nós nos preparou para continuar a caminhada, mesmo sem ter ela junto de nós, fisicamente. Seu amor pela vida preparou-nos, inspira-nos a seguir vivendo. Com saudade, mas tristeza. Assim, quando hoje nos reunimos em festa, ainda paira no ar a mesma sensação de completude, de felicidade plena, que sempre nos renovou, nos deu viço, força, para seguir em frente. E é essa alegria de estarmos juntos, essa vontade tamanha de sempre celebrar a vida, que nos sustenta e traz de volta a sua presença. Ela vive entre nós, novamente. É mesmo impossível não se deixar contagiar pela lembrança de sua alegria, não enxergar seu sorriso carinhoso, não sentir seu amor em meio a nós. Talvez tenha sido por isso que meu sobrinho, tão sensível como é, tenha se emocionado, quando nos despedíamos. “Por que você está chorando, meu filho?”, eu o perguntei, “Deu saudade da vovó, tio. Muita saudade!”. É como nos velhos tempos.


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