domingo, 1 de julho de 2012

Deixa eu te amostrar!

Acabara de concluir seu cursinho de português avançado. Gabava-se o tempo todo por falar corretamente. Sabia aplicar como ninguém as novas regras de hifenização. Nunca flexionava erroneamente o verbo haver no sentido de existir. Sempre aplicava corretamente as expressões “ir ao encontro de” e “ir de encontro a”. Escrevia “embaixo” junto e “em cima” separado. Estava enfim preparado!
Naquele dia, tão logo saiu de casa, foi abordado por um vendedor de facas, tesouras, canivetes, cortadores de unhas e outras quinquilharias.
— E aí, gringão! Num tá afim de comprar uma tesourinha, uma parada pra cortar as unha, não? Dá um help aí pro teu camarada, pra mim sustentar os menino.
— Desculpe-me, senhor. (Nunca usava próclise no começo de frases). Estou às pressas. Indo ao cinema com o intuito de assistir a um filme.
O vendedor saiu andando atrás dele e, com uma tesoura na mão, insistia:
— Tá bom. Só vou te amostrar, então!
Quando o vendedor falou isso, o gringo saiu em disparada.
                — Tirar-me uma amostra?! Meu Deus, como assim?
O vendedor, sem entender nada, foi correndo atrás, com facas e tesouras na mão, gritando:
— Para, sangue bom. Só quero te amostrar!
Correndo ainda mais desesperado, esquivando-se por entre as pessoas que circulavam pela rua, o gringo escorregou, caiu e bateu com a cabeça no chão.
Quando abriu os olhos novamente, ainda meio tonto, percebeu que estava deitado numa cama de hospital. Sim, provavelmente estavam ali o médico e a enfermeira. Teve vontade de correr novamente, mas mal conseguia se mexer.
— Então, como estamos? Tudo em paz?
Perguntou-lhe o médico. E, logo em seguida, sorriu-lhe a enfermeira:
— Consegue me ver? Quantos dedos tem aqui?
Desejou sumir dali. Não teve coragem de responder nada. Certamente, o que ele temia já havia acontecido. Mas não sentia nenhuma dor. Como isso era possível? Deveria estar ainda sob os efeitos da anestesia, pensou. Permaneceu calado. Com os olhos vidrados. Respiração ofegante. Muito inquieto. Começou a se debater descontroladamente, quando imaginou o que poderia ter-lhe sido extirpado.
— Doutor, os batimentos?! Estão muito acelerados. A pressão está subindo demais.
— Depressa, enfermeira. Sedativo na veia.
O gringo rapidamente se acalmou e voltou a dormir.
Mais tarde, quando acordou e deu de cara com o tal vendedor, não suportou. Arrancou soro, fios, sensores e saiu gritando pelos corredores do hospital.
Oh my God. Help! Socorro! Este louco novamente atrás de mim, ameaçando me amostrar, me arrancar um pedaço?! De novo não, please. Me tira daqui.
De tão nervoso, não conseguia pensar em próclise, mesóclise, ênclise, nada disso. Só parou depois de ter sido amarrado numa camisa de forças.
O gringo nunca mais foi o mesmo. A cada dia, cisma que alguém o persegue, pedindo-lhe uma amostra do seu corpo, querendo arrancar-lhe alguma parte. Nunca tem coragem de apalpar a tal parte imaginada.
Não conseguiu conviver com a dúvida. Passa os dias, pra lá e pra cá, pelos corredores do hospício, correndo atrás das enfermeiras, cantarolando coisas do tipo:
— Antes de “p” e “b” só se usa “m”. “Quem vai a e volta da, crase há. Quem vai a e volta de, crase para quê?”. “A, ante, perante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, por, sem, sob, sobre, trás...”
Enlouqueceu pela obsessão em falar corretamente a língua portuguesa.
Já o pobre do vendedor teve de dar boas explicações na delegacia. Acabou aprendendo na marra a diferença entre amostrar e mostrar. Hoje, para não criar maiores confusões, evita regionalismos. Opta, atualmente, por sempre fazer uso da norma culta.

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