quarta-feira, 4 de julho de 2012

Doce de mamão verde

Eles geralmente vinham embrulhados em papel de pão ou jornal. Ela os trazia quando retornava de alguma viagem curta à casa de amigos ou parentes. Aquela gente que morava na roça, que eles tinham o costume de visitar de vez em quando. Na maioria das vezes, ela tirava os mamões verdes da sacola e os colocava pra madurar na fruteira que havia no corredor. No silêncio da noite, os frutos sutilmente envelheciam. Entregavam-se silentes à inexorável ação do tempo. O verde ia se despedindo lentamente, dando vez a um amarelo cada dia mais forte e vigoroso. A dureza e o amargor rendiam-se à maciez e a doçura do fruto maduro. Era o tempo a conduzir, discreto, o milagre do amadurecimento. Passavam-se alguns dias, e ela, intuindo o desejo do fruto em se tornar alimento, separava um dos mais avermelhados, e colocava sobre a mesa para o café da manhã. Cortava então o mamão, de fora a fora, expondo aos nossos olhos atentos a beleza da fruta que se deixou transformar. Encaixando uma de suas metades na palma da mão, ela raspava o mamão com uma colher pequena, retirando-lhe as sementes, e o colocava sobre o prato do vovô, enquanto exaltava os benefícios da fruta no auxílio à boa digestão. Eu, que até então não tinha olhos de ciência, nada sabia a respeito da química, de enzimas e metabolismos, deixava-me levar apenas pelo encanto das incontáveis bolotinhas que feito bilhas rolavam pela mesa. Em silêncio, eu me divertia, tentando adivinhar qual delas alcançaria lugar mais distante sobre a mesa.

Se as frutas trazidas da roça não tivessem como destino a fruteira, era certo que no dia seguinte haveria doce de mamão verde. Neste caso, o ritual era outro. Era preciso vencer o quanto antes a avidez da fruta em se tornar madura. Não se podia esperar. Então, assim que chegava de viagem, ela já pegava os mamões ainda bem verdinhos e, com uma faquinha de ponta fina, riscava a casca de todos eles e os deixava descansando por algumas horas. Dizia ser necessário cortar a pele para deixar escorrer o amargor. Passado o tempo necessário, ela cortava os mamões verdes ao meio, retirava as sementes esbranquiçadas, e passava todos eles, com casca e tudo, num ralador bem velhinho, que ela guardava com todo cuidado, pois era o único que ralava os mamões da maneira que ela aprovava. O ralador, em verdade, não passava de uma lata de marmelada toda furada com prego e martelo, que havia sido presente de uma cunhada, que morava em Paty do Alferes, de onde geralmente vinham os mamões verdes. Geralmente, preenchia-se uma bacia bem grande com aqueles fragmentos de mamão ralado, que compunham um emaranhado de fiapos da fruta, que variavam seus tons desde o mais claro ao mais intenso dos verdes, que nem de longe lembravam o avermelhado do fruto maduro. Ela, então, cobria o mamão ralado com água e o deixava de molho durante a noite inteira. Na manhã seguinte, ainda bem cedo, lá estava ela à beira do fogão, a mexer o tacho com o açúcar e os fiapos da fruta, enquanto o vapor que ascendia, perfumava o sobrado com aquele cheirinho de doce de mamão verde e com nuances de cravo e canela. Naquele tempo, eu nem apreciava tanto assim o sabor do doce de mamão verde, mas gostava de saber que, mais tarde, estaríamos reunidos à mesa, enquanto ela carinhosamente ia servindo cada um de nós com um pouquinho daquele doce, que mais parecia um cristal de tão brilhoso e transparente.

Voltando pra casa, há alguns dias, lembrei-me do tal doce de mamão verde de minha avó. Entrei no supermercado e comprei alguns mamões bem verdinhos. Risquei-os da mesma forma que ela fazia. Deixei descansado. Mais tarde, enquanto eu ralava os pedaços do mamão, fiquei pensado no quanto aquele procedimento todo, o passo a passo daquela receita, trazia, de certo modo, ensinamentos simples para uma vida inteira. Minha avó, ao voltar de viagem com aqueles mamões verdes, já devia vir pensando, decidindo, o que fazer com eles. A escolha, por si só, já pressupunha caminhos diferentes, estratégias distintas a serem tomadas. Em alguns momentos, ela bem sabia, bastava apenas deixar o tempo agir. Quando não se pode fazer nada, além disso, é preciso tão somente ter paciência e saber esperar. Só mesmo o amadurecimento para imprimir essa sabedoria capaz de nos fazer compreender que, com o passar do tempo, mesmo a amargura e a dureza da vida podem se transformar em maciez e doçura. Por outro lado, em outras situações, a vida demanda atitudes mais rápidas e precisas. Não é possível se dar ao luxo de ver o tempo passar. Às vezes, o amargo tem mesmo é que sair na marra. Nem que pra isso seja necessário ferir, cortar a pele, para evitar que mais adiante tenha que se provar um dissabor maior. A sabedoria pode estar também na decisão de não esperar, de agir o quanto antes. Em certos momentos, é preciso saber tirar proveito das fases nem tão doces da vida. Levá-las ao fogo transformador. Fazer com que ganhem brilho e transparência. Para cada objetivo, sempre há uma atitude mais adequada a ser tomada. Ela, daquele seu jeito sereno, sempre escolhia a maneira mais sábia de lidar, seja com os mamões verdes ou com as questões mais complicadas da vida. De mamão maduro não se faz doce, ela dizia. Naquele dia, enquanto eu esperava o doce pegar o ponto, olhando minhas mãos a conduzir aquela colher de pau, eu pude perceber o quanto de minha avó ficou em mim, no meu modo de encarar a vida. Na maneira paciente e parcimoniosa em que tento fazer minhas escolhas, em que traço minhas estratégias. Naquele tempo, enquanto eu corria pelos corredores daquele sobrado, alheio às mudanças que o tempo impunha não só aos mamões esquecidos na fruteira, mas a todos nós, eu nem me dava conta disso, mas as lições de vida daquela senhora já me invadiam a alma, da mesma forma que o cheirinho do doce de mamão verde, que hoje novamente se espalhou por minha casa, fazendo-me sentir a mesma paz que sinto desde outrora.

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