Feriado, essa chuvinha
fina que não passa, lembra-me de uma época em que, num dia como esse, eu
acordava sem ter muito que fazer, e depois de tomar café da manhã num cantinho
de mesa, entre panelas secando depois de ariadas, roupas tiradas da corda,
ainda amarrotadas, aquela voz do locutor de programa de rádio AM já invadindo a
casa desde cedo, eu ia me esquivando daquela confusão toda e subia pra casa de
minha avó. Lá eu ficava às vezes apenas sentado na escadinha da área de
serviço, vendo a chuvinha cair, trocando algumas palavras com meu avô, um tanto
alheio à passagem do tempo, guardando aquele meu silêncio habitual. Em uma
dessas oportunidades, eu ainda muito menino, vi minha avó preparando um mingau
e pedi que me ensinasse a fazê-lo. Ela, com sua paciência de sempre, foi me
dando todas as dicas. Depois de ensinar-me a receita completa e explicar cada
detalhe de como preparar o mingau, ela disse que falaria então o segredo mais
importante: “não se esqueça de colocar, por fim, uma pitada de sal!”.
Obviamente que eu não consegui entender porque seria necessário acrescentar a
uma receita doce uma pitada de sal. E mais ainda porque isso era tão
importante. Então eu indaguei: “vó, mas pra que isso?”. Ao que ela muita
sabiamente respondeu: “A pitada de sal aguça o sabor doce, a presença do sal
torna o doce mais saboroso”. Na época, apenas registrei a informação. No
entanto, como em muitas outras vezes, esses momentos de convivência com minha
avó voltam à roda, à mente, e a maturidade me faz recriar, reinventar e reler a
beleza de suas palavras e ensinamentos.
Minha avó acabara
de me ensinar sua filosofia do contraste. A presença do oposto, do antagônico é
sempre necessária para valorizar e dar sentido àquilo que efetivamente é a
razão de nosso interesse, o objeto principal de nossa atenção, de nossos
anseios e desejos. Há pouco tempo, li um texto de Bacherlard que também dizia
alguma coisa neste sentido, neste caso, algo sobre a relação essencial entre a sede
e a água. A sede é o que dá sentido à água. Só o sedento sabe como ninguém valorizar
a água. Ou como diz o dito popular, “o melhor tempero é a fome”. A fome aguça o
sabor. A treva traz significado à luz. Dias de chuva tornam os posteriores dias
de sol ainda mais belos. A ausência dá sentido à presença. Assim, por exemplo, a
saudade se torna coisa boa de sentir quando traz pra dentro da gente o que não
se tem mais por fora. É o mecanismo de trazer o longe pra perto. Tornar
presente o ausente, concreto o abstrato. Parece que essa é a lógica da vida. A necessidade
de contrastes.
No entanto, a
gente vive tentando fugir dessa realidade de antagonismos, sempre presentes e
tão importantes de serem vivenciados. Parece que não queremos aceitá-la nunca. Não
educamos e nem somos educados para ela. Vivemos a ilusão de que a felicidade é apenas
um destino a ser alcançado e não uma estrada a ser percorrida. Idealizamos a felicidade
como um estado de alma, onde a dor, o sofrimento, a tristeza não são possíveis
de serem admitidos. Quando na verdade, é sabido que momentos tristes também constroem
uma vida feliz. Fico muito angustiado, por exemplo, quando vejo pais criando
seus filhos na infrutífera tentativa de protegê-los das decepções, dos
percalços, da dor, e até mesmo da experiência da morte. Como se isso fosse
possível. A dor, o sofrimento, a tristeza, obviamente, não são fáceis de serem
vivenciados. Mas fato é que eles existem. Não temos como fugir. Lá em casa, graças
a Deus, nunca nos foi negado o direito de experimentar a dor. Aprendemos desde
cedo que a tristeza, o sofrimento, e mesmo a morte, faziam parte da vida. Minha
avó sempre passou por estes percalços de forma muito digna. É claro que sofria,
chorava. Mas nunca lamentava. Apenas respeitava, dava o tempo e importância
devidos àqueles momentos. Mesmo quando perdeu filhos, não se entregou a ponto
de sepultar com eles a sua alegria de viver. Encarava a dor com elegância.
Pois, sabia que não era ela a responsável pelo sabor real da vida. A vida é
doce, mesmo com suas pitadas de sal, ela sabia.
Por isso, seja
essa de fato a grande sabedoria da vida. Entender que ela é feita de
contrastes. Os quais são necessários, essenciais. Reais. O que não quer dizer
que são fáceis. Mas é preciso vivenciá-los para que a vida imprima seu
verdadeiro sentido. Por isso, é importante respeitar a dor, é preciso ter
paciência, resignação e saber esperar o tempo dela passar. Porque ela passa.
Sempre passa. A gente tem é que aprender a ter a medida certa. Buscar o tão
cobiçado equilíbrio. A pitada de sal não pode ser tal que elimine o sabor doce
do mingau, ensinava-me minha avó. O sal deve estar na medida certa. Nem mais
nem menos. É preciso experimentar o amargo, o acre, afim de que se possa
entender e verdadeiramente saborear o doce da vida. Talvez quando me alertou para
aquele tal detalhe, minha avó não tivesse a verdadeira dimensão do quanto seu
ensinamento seria importante para minha vida. E nem eu mesmo poderia supor.
Ai sua vó Dalila, dai a origem de tanta sabedoria, dela e sua, obrigada porque atraves da sua poesia, viagens musicas... você mata a fome da minha alma tambem.... grande beijo Cristiane Viana
ResponderExcluirCris, fico feliz por isso! Te amo.
ExcluirTexto sensível, tocante. Vc consegue falar sobre a realidade de uma forma que não machuca, com suavidade. Sempre que leio textos seus que fazem referência à sua avó, fico com vontade de tê-lá conhecido, ela me parece ter sido uma pessoa que fazia a diferença na vida de quem a cercava. Nem todas as pessoas são assim, né! Obrigada sempre pelo prazer de ler suas palavras. Bjs Carla Braga
ResponderExcluirQue bom Carlinha! De certa forma, você já conhece minha avó! bjs. Anderson
ExcluirAmigo! como sempre os seus textos têm o poder de me emocionar. Quando os leio consigo me transportar para o cenário que você sugere, para o ambiente, os cheiros e os sons. Quase senti o sabor do mingau... e da sabedoria que me inundou. Isso mesmo: vida de contrários que por isso se torna tão rica. O verso tem reverso, o esquerdo tem direito, o de graça tem seu preço e o problema solução - já cantava nosso amigo Pe. Fábio.
ResponderExcluirVocê enche minha vida de doçura, com sal na medida certa! Te amo meu amigo! Muito!
Dani, querida... nem precisava assinar. Eu saberia que tinha sido você. Te amo muito também.
ExcluirAh, esqueci de colocar meu nome aí no texto de cima: Dani Brites...hehehe
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