Seu coração sempre fora terra
inabitada. Muitos viajantes ousaram fazer morada, tentaram se instalar. No
entanto, suas terras nunca se mostravam hospitaleiras, não faziam sequer
questão de acolher quem por elas passava. Ela própria era a grande senhora
daqueles campos, aquela que sempre dava as ordens e decidia quem deveria ou não
permanecer. Certo dia, viu adentrar meio sorrateiro um alguém que desde então
lhe pareceu muito especial. Foi chegando de mansinho, conquistando espaço,
voluntariamente atraente, sedutor. Já em sua primeira visita, ela tentou – meio
sem jeito – hesitar em abrir as porteiras de sua propriedade. Porém, o alguém
levou-a a fazê-lo sentir-se em casa e deu-lhe nuances de uma tranquilidade, de
uma alegria que ela não recordava ter experimentado. E cantaram. Isso.
Cantaram. Imagine que o forasteiro arrancou-lhe a música que ela aprisionara
até então. E naquele mesmo dia esse alguém foi embora. Mas deixou-a perceber
que voltaria. E voltou muitas vezes. E sua presença perene transformou os ares
de sua terra, que parecia não suportar de tanta primavera. E floresceu como
nunca. E exalou um perfume de essência jamais experimentada. Esse alguém se
instalou e tomou conta de suas searas. Hoje, pelo que se sabe, é ele o senhor
de suas terras. Pois, seus campos não seriam jamais os mesmos na ausência dele.
É dele que agora parece vir a segurança, a alegria, a paz que outrora existiam,
mas não na plenitude que hoje se apresentam.Vê-se em seus olhos, um temor de
que esse senhor decida um dia desbravar outras terras, e deixe para trás as
tantas flores que plantou. Por isso, seu ofício tem sido dar-lhe terra boa,
aquecê-la com o mais belo dos sóis, dar-lhe toda noite a mais brilhante das
luas e junto dela cravejar as estrelas mais fascinantes. De manhã, deixa que a
brisa toque o rosto de seu amado, que o orvalho lhe refresque o corpo. Quer
fazê-lo sentir-se prisioneiro desse paraíso, para que seja impensável sua
partida. Deseja ardentemente que crie raízes, que ame, que se apegue e respeite
cada vez mais as terras que acolheram-no. Pois sente que só será feliz enquanto
ele estiver vagando pelas brenhas do seu coração. Enquanto ela puder esperá-lo.
Para acarinhá-lo, tirar-lhe as sandálias, lavar-lhe os pés. Tocar-lhe o rosto
até que ele adormeça, descanse e fique em paz. Quer tê-lo sempre à sua espera.
Ansioso. Quer-lhe a correr ao encontro, a dar-lhe o desejado abraço, a sentir
na pele o coração pulsante de felicidade. Quer o beijo ardente a molhar-lhe os
lábios, a acolher a lágrima que lhe desce a face. Quer enfim dar-lhe a mão,
para que possam caminhar juntos. Para seguirem a estrada que se lhes agiganta
adiante. Quando estiverem cansados, quer ser-lhe e nele ter a força do
recomeço. Quer dar-lhe a mão. Amar. Pra sempre. Caminhar. Juntos. Até que sejam
como encantados. Até que não precise dizer palavras. Até que se façam
eternidade.
Minha alma tem fome! Por isso vivo buscando formas de alimentá-la. Poesia, música, viagens, cozinha, cotidiano e tudo onde enxergo poesia. Aqui vou compartilhando meu pão e minha poesia de cada dia!
quarta-feira, 12 de junho de 2013
segunda-feira, 10 de junho de 2013
Desde o tempo em que o Merthiolate ardia!
Será que alguém
já pensou nos efeitos causados a uma geração de crianças e adolescentes, que
passou a vida inteira sem saber o que é um remédio que arde? Lembro-me muito
bem de que passar Merthiolate nos machucados quando éramos criança era um
evento que acabava mobilizando grande parte da família. A criança estava lá
quietinha, brincando, quando, de repente, começava a movimentação, aquela troca
de olhares entre os adultos. Geralmente a mãe segurava a criança, que quando
via aquele vidrinho âmbar, que tinha na tampa uma haste com uma redinha de
plástico no fim, já abria o maior berreiro. Havia então todo um cerimonial,
toda uma etapa de negociações e convencimentos e promessas. Então, só depois
que se jurasse que haveria sopro antes, durante e depois da aplicação do
maldito antisséptico, a criança resignada permitia que se fizesse o que não
havia remédio. Lá em casa, por exemplo, tinha que ligar até ventilador em cima.
Olha que ainda estou me referindo ao Merthiolate vermelho, aquele que deixava
as crianças todas pintadas pelo corpo inteiro. Depois que inventaram o
Merthiolate incolor, a coisa ficou ainda pior. Lá em casa, a gente cismava que
ele ardia ainda mais. “Pai, passa mercúrio, por favor!”. “Mercúrio não arde,
não presta!”. Portanto, minha memória afetiva não me permite confiar num
Merthiolate que não arde. É uma questão de princípios.
Sinceramente,
não sei onde querem chegar com essa história de que criança não pode sofrer.
Essa superproteção exagerada. Estamos construindo uma sociedade de gente
despreparada para a decepção, para a tristeza, para a morte. Como se estas
coisas todas não fizessem parte da vida. Hoje em dia, por exemplo, é quase
inadmissível uma reprovação na escola. Obviamente, existem os exageros de ambas
as partes. Mas a decepção faz parte da vida, o fracasso é inerente, e a gente
precisa aprender a lidar com isso de forma proveitosa. Lá em casa, desde
criança, sempre estivemos inseridos em todas as situações familiares, fossem
elas boas ou ruins. Sempre soube que era possível sofrer, se decepcionar mesmo
com aquelas pessoas mais próximas, que irmãos brigavam, mas que se perdoavam
também. A gente se alegrava coma a notícia de mais um bebê, um primo, uma irmã
que ia chegar etc. Mas também não éramos privados da dor causada pela perda de
pessoas queridas. Lembro-me da primeira vez em que me deparei com a morte. Meu
tio, um dos irmãos mais novos de minha mãe, morreu num acidente de carro aos
vinte e um anos de idade. Foi uma comoção total na família. Eu na época tinha
uns sete anos de idade, minhas irmãs ainda mais novas. Mas, lembro-me de termos
ido todos ao cemitério, de termos participado do velório. Lembro da gente
brincando entre os túmulos, rindo das fotos, dos nomes das pessoas mortas.
Depois, à medida que fui crescendo, eu gostava de ir aos enterros de parentes
com minha avó. Isso tudo pode parecer mórbido, mas estou falando do meu tempo
de criança. Do meu olhar de criança, que ainda não entendia a verdadeira
gravidade e importância daqueles momentos. Mas, de certa forma, experimentar
todas aquelas situações já ia incutindo em mim certo respeito por tudo aquilo.
De alguma maneira, eu entendia a solenidade daqueles momentos, em que a família
se solidarizava com a dor das pessoas. Aquela família que muitas vezes se
reunia para celebrar a vida, comemorar aniversários, batizados, estava ali
também no momento de dor.
Quando ouço, por
exemplo, essas novas versões de músicas infantis, do tipo “não atire o pau no
gato-to, porque isso-so-so não se
faz-faz-faz...”, fico pensando que passei a minha infância inteira, cantando a
versão não-politicamente correta desta mesma canção, aquela em que o gato levava
uma paulada, se ferrava todo, mas conseguia escapar e não morria. Na verdade,
não me lembro de saber exatamente o que estava cantando naquela época, até
porque coisas como “dona-chica-ca-ca-dimirou-se-se-duberrô-duberrô-que-o-gato-deu”
não faziam o mínimo sentido pra mim. Fato é que não foi porque eu cantava isso
quando criança, que eu sai dando paulada em gatos, cachorros, ou qualquer outro
animal, à torto e à direito. E, é claro que também o fato de eu ter aleijado
alguns grilos, marimbondos e formigas quando criança, não me transformou num
sujeito perverso, de má índole, nem num adulto que maltrata animais. Até
porque, pelo menos na minha época, quem ensinava que maltratar animais – dentre
tantas outras questões – não era legal, era pai e mãe, e não pura e
simplesmente uma cantiga de roda, que se cantava inocentemente. Isso sem falar
nas versões atuais das tradicionais histórias infantis, dos contos de fadas, em
que a bruxa não manda mais arrancar o coração da mocinha, ou que o lobo-mau não
engole mais a vovozinha, que a madrasta não escraviza mais a enteada, etc etc. Que
mundo é esse que esse pessoal está querendo ensinar pras crianças?
O que temos de
aprender desde sempre é que nascemos mesmo para sermos felizes, mas que isso é uma
conquista diária, uma luta pra vida toda. A gente vai sim quebrar a cara, vai
ter decepção, vai sofrer, vai ficar triste, vai perder gente que ama, vai
sentir saudade, e nem sempre vai ter um remedinho tarja preta pra resolver. O
que temos que nos acostumar desde sempre é tudo isso faz parte da vida. E, de
fato, podemos até mesmo nos transformar em seres humanos melhores, se aprendermos
a lidar com isso desde cedo. Há dias na vida em que você acorda cedo, vai comprar
flores pra enfeitar a casa para receber amigos queridos. E, de repente, o vaso,
que era de vidro, se quebra. Você se corta todo, termina a manhã num
pronto-socorro, leva um monte de ponto nos dedos. Então, você se dá conta, que
nem tudo na vida são flores. Há vasos e vidros quebrados, há sangue, há dor.
Mas também há gente que se solidariza, que larga tudo pra te socorrer. Há gente
que te ajuda o dia inteiro pra que a festa continue. Mesmo com os dedos
cortados, mesmo sem vaso de cristal, as flores ainda enfeitam a casa, os amigos
ainda estão lá, por perto, dispostos a celebrar a vida contigo. A vida
continua. Pois, a felicidade de uma vida se constrói com alegrias e tristezas,
momentos de prazer e de dor. Isso, eu aprendi desde cedo. Porque é assim desde
que o mundo é mundo. É assim desde o tempo em que o Merthiolate ardia. E nem
por isso, mesmo depois da dor dos machucados, da ardência ou do amargor dos
remédios, a gente nunca desistia de brincar, a gente não deixava se arriscar. O
que a gente sempre quis – e continua querendo – é ser feliz, mesmo sabendo que
pra isso, às vezes, seja preciso sofrer um pouquinho.
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domingo, 2 de junho de 2013
A sorte de um amor que lhe faça gargalhar
Ontem assistindo a um
filme na TV, num dialogo entre dois personagens, um deles pergunta: ‘você amava
a sua mãe?’, ao que o outro responde: ‘sim, eu a amava. Porém, não gostava
dela.’ No momento, achei meio estranho. Mas depois compreendi e concordei que é
mesmo possível amar alguém e ao mesmo tempo não gostar desse mesmo alguém.
Gostar inclui ter prazer. E nem sempre o amor é prazeroso. Às vezes, ele pode
ser sofrido, triste. Denso demais. No caso de uma relação entre mãe e filhos, ou entre irmãos, talvez, amar sem gostar pode até ser
possível, pois em determinado momento você acaba não tendo mais que conviver
diariamente, e o amor acaba por sobreviver, e até pode aumentar de qualidade
quando você mantém uma distância segura e necessária. No entanto, isso não
funciona quando você pensa em alguém com quem você quer construir uma história
de vida, de companheirismo, alguém com quem você deseja ter um projeto de vida
junto. Neste caso, o amor só faz sentido se vier acompanhado do gostar, do
prazer em estar perto, em conviver, em dividir.
Eu sempre pedi a Deus que
me livrasse desses amores densos, cheio de cobranças e inseguranças. De que
serve um amor que nos tira a liberdade, que nos afasta do mundo. Que serventia
tem um amor triste. Um amor que poda, que domina, que castra. Amor assim tira
as energias da gente. Vai enchendo. A gente acaba se perdendo, e jaz sufocada
entre as tantas “coisinhas miúdas” que vão se amontoando em cima de nós, feito uma
montanha de lixo, poeira que gruda, e com o tempo vai nos escondendo de nós
mesmos, tirando-nos a espontaneidade. Amor assim morre sem ar. Ter alguém que lhe faça suspirar de paixão é bom
demais, mas isso não se sustenta por muito tempo. Não aposte nisso todas as suas
fichas. Alguém que lhe deixe inebriado na hora do sexo é ótimo também, mas uma
hora isso também perderá a importância. Procure por alguém que acima de tudo
lhe dê alegria. Queira do teu lado alguém que esteja mais interessado em saber como
você está do que onde você está. Não procure alguém que não tenha defeitos, mas
alguém cujos defeitos, ainda que irritantes em certos momentos, você seja capaz
de suportar e até ria deles de vez em quando. Amor é liberdade e alegria. Não faz sentindo algum caminhar ao lado
de alguém que lhe roube de si mesmo. O que a gente quer da vida é se sentir
livre. Essa é a única receita para ser feliz pra sempre ao lado de alguém.
Liberdade. Faz-me lembrar de uma das cenas finais do DVD “Os mais doces
bárbaros” em que Bethânia, num momento bem descontraído, (Clique para ver o vídeo) fala que em dado instante daquele show, havia sentido que mesmo depois de tantos anos, eles – os Doces
Bárbaros – ainda tinham esse desejo de liberdade. “Aí me deu uma alegria. Pois
quando tem liberdade, eu fico feliz”. É disso que estou falando, exatamente
disso, da alegria de ser livre.
Sabe aquela máxima que
diz que se conselho fosse bom, não se dava, vendia? Pois bem, como sou da
filosofia cantada por Caetano, “não me amarra dinheiro não, mas formosura, (...)
elegância, (...) os mistérios ...”, se eu tivesse o poder de incutir algo em
pessoas que me são queridas, se eu pudesse dar um único conselho que fosse, para
os meus sobrinhos, por exemplo, eu diria: mais do que um amor tranquilo, queira a sorte de um amor que lhes faça gargalhar. Escolha para ter para sempre ao
seu lado, alguém que lhe faça rir. Apaixone-se por alguém que lhe arranque boas
gargalhadas. Alguém que desperte em você a alegria. A santa e essencial alegria
de viver. Alguém que mais do que amar, você goste de ter por perto. Alguém que
desperte um sorriso vivo, brilhante, pelo menos uma vez no dia. Pois, nem mesmo
o maior dos amores resiste à falta de um sorriso espontâneo, de uma alegria
inesperada. Por mais que você ame muito alguém, se juntos não cultivarem a
alegria no dia a dia, o amor certamente não resistirá. Como bem diz a canção do Arnaldo
Antunes, “a tristeza é uma forma de egoísmo”. Então seja para o outro, alegria.
Queira um amor que mais do que levar-lhe à beira do abismo, queira sair de lá
junto com você. Cultive um amor que lhe queira livre. Porque se tem liberdade,
tem alegria... e só assim se pode ser feliz.
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sexta-feira, 24 de maio de 2013
Meu ensaio pessoal sobre a cegueira
Quando assisti ao filme “Ensaio sobre a cegueira” em DVD, passei por uma
experiência bastante inusitada. E que, por isso, acabou sendo marcante. Mexendo
no controle remoto para colocar legenda em português, acabei selecionando uma
opção de áudio, em que além das falas dos atores, o narrador ia descrevendo
cada uma das cenas, ou seja, narrando tudo aquilo que não era possível perceber
apenas ouvindo as falas dos personagens. O narrador descrevia coisas como: “a
mulher do médico entra no supermercado saqueado”, “muito lixo espalhado pelas
ruas”, “fez-se um grande clarão!” etc. A princípio achei aquilo muito estranho,
mas como era um filme sobre a cegueira, pensei que fazia parte do esquema,
levar o expectador a ter essa experiência. Vi o filme todo assim. De vez em
quando eu até fechava os olhos e tentava fazer o exercício de imaginar as cenas
narradas. Mais tarde, comentando com alguns amigos, eles me disseram que não
tinham visto o filme desta forma. Foi então que me dei conta de que havia
escolhido – por engano – a opção de áudio para deficientes visuais. Por
coincidência ou não, minha experiência com o filme teve esse quê a mais.
Assistir a um filme sobre a cegueira, do ponto-de-vista de um cego, acabou
sendo uma experiência interessante.
O filme por si só renderia várias
histórias e reflexões. No entanto, lembrei-me dessa situação, pois no início
desta semana, vendo o Programa do Jô, depois de ter chegado de um show da Zizi
Possi, assisti a uma entrevista de um homem cego – ele mesmo preferia ser
chamado assim, em vez de ser tratado de deficiente visual. Vejam só: o tal
homem foi chamado para ser entrevistado, por ser um dos mais assíduos
frequentadores de bibliotecas públicas em São Paulo. Ele contou sua história e
as dificuldades pelas quais havia passado durante a sua infância e
adolescência, pois na época, as escolas não tinham nenhum tipo de politica de
acessibilidade. A escola para cegos mais próxima de sua casa ficava ainda muito
distante e seria impossível para seus pais levá-lo e buscá-lo na tal escola
todos os dias. Desta forma, eles o matriculavam em escolas ditas normais e, a
seu pedido, não informavam que ele era cego. É óbvio que ele passava por poucas
e boas, até que um ou outro aluno ou professor descobria, e passava então a
ajudá-lo. Mais ainda assim ele repetia muitas vezes as séries. Quando chegou ao
ginásio, veio estudar em sua turma, um menino venezuelano, que passou a
auxiliá-lo definitivamente. E, como ele mesmo falou, seus problemas acabaram,
pois o tal amigo passou a ser os olhos dele. O tal amigo venezuelano, com o
auxílio de outros colegas, ajudavam –no nas aulas, descreviam as situações,
conduziam-no, de forma que a turma não soubesse que ele era cego. Num inicio de
ano, já no ensino médio (antigo segundo grau, e na época dele, colegial), no
primeiro dia de aula, ele – o cego – pede ao amigo venezuelano que descreva os
colegas de turma. O amigo então começa a descrever detalhadamente cada um dos
alunos, até que chega a vez de uma menina que sentava na primeira fileira. O
cego então se interessa pela descrição e acaba se apaixonando pela tal menina.
Todos os dias, ao chegar à classe, ele que já havia decorado um caminho para ir
direito ao fundo da sala para sentar próximo aos amigos, passou a desviar o
caminho para se aproximar da tal menina e falar-lhe coisas do tipo: “como você
está bonita hoje”, “tem alguma coisa diferente em você.”. Fazia isso todos os
dias, mas nunca conseguiu se declarar. E a menina também nunca soube que ele
era cego.
Por circunstâncias da vida, acabou
perdendo contato com o tal amigo venezuelano, e também com a menina da primeira
fila. Causou-se, teve filhos. Passados mais de trinta anos, por intermédio de
redes sociais, ele voltou a ter contato com o colega de classe. E reencontrou
também a menina da primeira fila. Inicialmente, ele pensou que todo aquele
sentimento que ele tinha por ela havia passado, mas quando ouviu de novo sua
voz ao telefone, disse que todas aquelas sensações da adolescência voltaram,
como se ele nunca tivesse deixado de estar ao lado dela. Sentiu-se novamente o
mesmo menino, que passava por perto dela, toda manhã, para dizer-lhe elogios,
mesmo sem enxergá-la. Falou também da importância de reencontrar o amigo, que
havia sido seus olhos por tanto tempo, que descrevia o mundo para ele e o fazia
experimentar coisas como, por exemplo, dirigir uma Variant 76, que seria
impossível, não fosse a coragem e a dedicação daquele seu amigo de infância.
Tanto a menina da primeira fila – hoje sua namorada - como o amigo venezuelano,
estavam na plateia do Jô. Dentre as muitas coisas que ele disse, uma me chamou
mais a atenção. Pra tudo que ele deseja ter ideia de como é, ele pede a pelo
menos cinco pessoas que descreva. Por exemplo, em pé na Pedra do Arpoador,
diante do pôr-do-sol. “O que você vê?”, ele perguntaria a cinco pessoas. E cada
uma delas descreveria à sua maneira. Disse ele, que só assim ele acredita
conseguir fazer sua imaginação chegar mais perto do que de fato é o pôr-do-sol
no Arpoador, pois cada pessoa tem a sua visão própria, enfatiza um ou outro
detalhe, percebe uma ou outra nuance. Quando a gente pode ver sozinho, os
detalhes, as nuances podem passar despercebidas. E a gente cai na ilusão que o
mundo é simplesmente aquilo que nossos olhos captam.
No show da Zizi, acabamos ficando num
lugar não muito confortável. Um senhor bem alto sentou-se à nossa frente. A
gente tinha que ficar se esquivando dele o tempo todo para vê-la melhor. Isso
acabou nos deixando incomodados, desviando nossa atenção, enfim, tirando um
pouco da mágica do espetáculo. No entanto, em dado momento do show, eu decidi
aproveitá-lo, independente de qualquer coisa, desviando meu olhar por entre as
cabeças à minha frente, buscando uma visão melhor, e tentando sentir a música
que em verdade prescindia dos meus olhos para acessar a minha alma. Em casa,
ainda com aquelas canções e aquela voz ecoando, depois de conhecer aquele homem
cego e suas histórias de um amor que vai além do que olhos possam captar,
lembrei-me então do verso que tanto havia me emocionado durante o show. “O amor
fez parte de tudo que nos guiou. Na inocência cega. No risco das palavras. E
até nos risco da palavra: AMOR”. Fiquei pensando que nossa felicidade,
definitivamente, depende da forma como decidimos olhar a vida. Ser feliz é uma
questão pessoal, ou seja, é algo que depende acima de tudo de nossas escolhas.
No entanto, encontrar essa tal felicidade fica bem mais fácil quando temos ao
nosso lado alguém que nos ajuda a captar os detalhes, as nuances, que sozinhos
seríamos incapazes de enxergar.
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domingo, 19 de maio de 2013
Além do último capítulo...
Nestes dias de último
capítulo, de fim de novela, cheguei à conclusão que felicidade não dá ibope. A
gente só quer ver felicidade no final. Vida feliz é chata de acompanhar, não
prende a atenção de ninguém. A gente se interessa pelo caminho, pelo esforço
pra se chegar lá. Não pela felicidade em si. Certamente não faria sucesso algum
uma novela, um filme, um livro etc que mostrasse a rotina feliz de um casal.
Imagine se o último capítulo não fosse o fim da novela. Imagine chegar em casa
toda noite, ligar a TV e, a partir de agora, ver a Morena e o Theo sendo
felizes para sempre. “Hoje eu tenho que correr pra casa, não perco a novela por
nada. É hoje que a Morena vai preparar um jantarzinho pro Theo. Depois ele vai
ajudá-la a lavar a louça, e então ela vai trazer a sobremesa preferida dele e
eles vão assistir a um filminho no DVD. Vão rir de coisas corriqueiras. Numa
determinada cena, ele vai olhar pra ela, na certeza de que ela vai estar
chorando, emocionada. Então, ela vai pegar no sono no colo dele. Quando o filme
terminar, ele vai acordá-la, os dois vão pra cama e vão começar a dormir
abraçados. Não vai ter sexo, essa noite. No meio da noite, ele vai sentir calor
e vai tirar o braço e as pernas dela de cima dele. Ele vai roncar um pouco. Ela
vai acordar e mexer nele para ele se virar e parar de roncar. De manhã, ele vai
acordar primeiro e vai começar a fazer coisas para acordá-la. Os dois vão ficar
implicando um com o outro por alguns minutos. Ele vai para o chuveiro. Ela vai
ouvir o barulho da água, ainda na cama, e vai pro chuveiro também. Eles vão
fazer sexo embaixo d’água. Depois do gozo, enquanto tomam banho, ela lembrará a
ele que é dia de pagar o condomínio. Ele vai começar a se arrumar. Ela, então,
vai preparar o café enquanto ele dá uma passada de olho no jornal. Ele faz que
vai abrir a porta pra sair, ela segura a maçaneta e pede um último beijo. Ele
sai. Ela fica olhando, escondendo parte do corpo por trás da porta, enquanto
ele espera o elevador chegar. Então, ela volta pra cozinha e se depara com um
pia cheia de louça pra lavar. Sobem os créditos”. No capítulo de amanhã, talvez
eles tenham uma discussãozinha boba qualquer, vão ficar de cara feia por um
tempo, aborrecidos, depois um ou outro vai ceder e a vida voltará ao normal.
Vida normal, rotina. Ah, pelo amor de Deus, isso não dá ibope. Por que será que
não? A verdade é que a gente passa a novela inteira torcendo pela felicidade da
protagonista, mas a felicidade só tem graça se for alcançada no último
capítulo. Só no último capítulo é que todo mundo casa, tem filho, enfim, todo
mundo é feliz para sempre. Um pra sempre que acaba ali mesmo. Porque se
continuasse, seria chato demais.
Pois é. Mas, às vezes, é
isso que a gente faz da nossa vida também. Nem sempre o que deixa a gente feliz
é o ser feliz de fato, mas é o fato de estar tentando ser feliz a todo custo.
Na vida real, a gente torce pra ter aquela felicidade de último capítulo, mas
quando ela é alcançada, a gente não sabe o que fazer com ela. Estar feliz com a
rotina parece incomodar. A gente quer sempre mais. A gente quer mais emoção na
trama. É claro que isso pode ser estimulante, motivador. Por outro lado, por
que não querer mais do que se tem é estar acomodado? Estar satisfeito é sempre
sinal de falta de interesse, de falta de ambição, de inércia? Eu, por exemplo,
tracei objetivos na vida, desde muito cedo, e foquei meus esforços em
alcançá-los. Hoje, em muitos momentos, vivo a sensação de ter chegado
exatamente no ponto onde eu sonhei estar. Não que eu não tenha novos objetivos,
que não tenha mais sonhos. Até porque eu planejei chegar aonde cheguei,
justamente para poder sonhar mais e mais, e ter a possibilidade de ter tempo
disponível pra praticar a realização de meus novos sonhos. É óbvio que viver
acomodado, satisfeito com pouco, é ruim. Mas desacelerar depois que a fita foi
rompida no ponto de chegada e comemorar, desfrutar da vitória, por alguns
instantes, também não faz parte do processo? Estar satisfeito pode ser pura e
simplesmente sinal de que se chegou lá. E isso não é ruim. O esforço a partir de
então pode ser empregado na nobre tarefa de tentar manter a posição alcançada,
fazer a tal felicidade de último capítulo perdurar por muito tempo. E isso não
é tarefa fácil não! Pelo contrário, requer muita dedicação. Pois a nossa
felicidade é de vida real, precisa continuar além do momento em que a palavra
“fim” surge na tela. Precisa continuar na rotina, no dia-a-dia, nos momentos
que não dão ibope, nos momentos em que ninguém correria pra casa pra acompanhar
a nossa novela. Não dá pra se viver em função de ser feliz apenas no final. E,
quando muito, mais uma vez na reprise do sábado. O que a gente quer é um pra
sempre que continue na segunda-feira. Um pra sempre que suporte a rotina, que
vá além do aviso de que essa história é uma obra de ficção, e que qualquer
semelhança é mera coincidência. Porque, de fato, não é.
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