No meu tempo de menino, em dias de aniversário, eu geralmente
acordava cedo e já subia pra casa de minha avó. Quase sempre, eu a encontrava
por detrás da mesa, que ficava na área de serviço, em meio a cascas de ovos,
farinha de trigo espalhada, açúcar, pó Royal. Logo que eu aparecia, ainda com
cara de sono, ela já abria aquele sorriso. Ela tinha um jeito de sorrir com os
olhos, que encantava e aquecia o coração da gente. Ela largava tudo, limpava a
mão no avental e vinha me beijar, abraçar, desejar coisas boas. Abençoar. Era o
melhor abraço do dia. Então ela chamava o vovô, que saía lá de dentro da casa,
e, também sempre tão carinhoso, vinha com aquela alegria, dar um abraço
apertado, e aqueles muitos beijinhos que ele até hoje tem mania de dar. Eu,
então, me colocava ao lado de minha avó, e ficava ali, observando. De olho na
colher de pau e na bacia, cheias de massa crua, que ela me dava pra raspar e
comer no final.
A receita estava na cabeça, nenhum papel, nada por escrito. Ela
adicionava cada um dos ingredientes sempre na mesma ordem. Peneirava a farinha
de trigo, separando os carocinhos que sempre sobravam ao final. Fazia aquele
montinho de farinha de trigo no meio da bacia. E, depois, ia quebrando cada um
dos ovos separadamente em outra bacia. “Um ovo estragado, pode botar tudo a
perder”. Por fim, ela sempre testava o pó Royal, com um pouquinho de água. Se
fizesse bolhinhas, estava bom. “Se o fermento não fervilha, o bolo não cresce”.
Batendo sempre pro mesmo lado, sem parar, para o bolo não solar. Depois era só
untar o tabuleiro, jogar a massa e levar ao forno para assar. De vez em quando,
ela ia com um palito de fósforo e furava o bolo pra ver se já estava no ponto.
Eu nunca estendia o porquê disso. Hoje, faço a mesma coisa. Depois dos bolos assados,
era hora de confeitá-los com glacê e frutas. Aquele cacho de uvas bem grande no
meio, meias-luas de maçãs e conchinhas de pêssegos em caldas e ameixas secas,
imitando flores, coloriam a superfície do bolo. Mais tarde, era só enfeitar a
mesa com refrigerantes encapados e docinhos, e cantar parabéns. Festejar. Pois
era isso que a fazia mais feliz. Celebrar a vida, em meio à família. Casa
cheia. Alegria transbordando.
O tempo foi passando, eu já não era mais tão criança, mas ainda
guardava o costume de, no dia do meu aniversário, subir logo pela manhã para
pedir-lhe a benção. O beijo, o carinho, o abraço apertado, continuavam tão bons
quanto antes. O sorriso ainda mais carinhoso e encantador. E, mesmo depois de
tantos anos, ainda a encontrava peneirando a farinha de trigo, medindo as
xícaras de açúcar, entre cascas de ovos quebradas sobre a mesa, testando o
fermento em pó. O bolo podia até não ser mais confeitado com glacê e frutas,
mas sempre presente, era coberto do carinho e do amor, que só as avós conseguem
nutrir pela gente. Para ela, sempre foi assim, dia de aniversário era pra ser
comemorado. Não podia passar em branco de jeito nenhum. Ainda que fosse apenas
com um bolinho pra tomar café. Mesmo nos momentos mais difíceis, quando ela
poderia ter todas as justificativas para não festejar, ela festejava.
Ali, à beira da mesa enfarinhada, na barra do vestido de minha
avó, eu ia crescendo e aprendendo seu modo de vida. Enquanto ela misturava
ingredientes com tanto cuidado, cada um ao seu tempo, eu ia aprendendo que a
vida é essa arte da mistura, em que cada ingrediente tem a sua importância na
massa, e que é preciso saber dosá-los e acrescentá-los no momento mais
conveniente. Entendia também que muitas vezes é preciso quebrar a casca para
saber o que cada um tem por dentro, pois uma casca perfeita pode ocultar um
interior estragado, apodrecido, que acrescido à massa pode comprometer o gosto
doce do bolo. É preciso zelar, prevenir, proteger, para evitar adição daquilo
que dentro de si não tenha nada de bom a oferecer à mistura. Compreendia que há
coisas na vida que não precisam estar presentes em grande quantidade, mas é
essencial que tenham a qualidade de nos fazer crescer. Aprendia que mesmo em
momentos nem tão alegres, era preciso celebrar a vida. Vovó era incansável
nesta arte de conviver com a alegria e a dor, sem deixar que uma se
sobrepusesse à outra. A cada uma delas, ela dava o devido lugar e o respeito
necessários. Tudo ao seu tempo. Sabia também de cor essa receita para a vida,
ir adicionando tudo que a vida tem a nos oferecer, peneirando, eliminado as
pedras do caminho, descartando o podre, o prejudicial. Dando o tempo necessário
pra fazer a massa crescer, se transformar em algo leve, doce, mais fácil de
digerir. Naquela casa, nunca nos fora negado o direito de conviver com a
dualidade, tão presente no dia a dia, com a alegria e dor, com o nascimento e
com a morte, com o riso e com o pranto. Por que tudo faz parte da vida. Tudo é
importante na massa.
Mesmo depois de adulto, morando mais distante, sempre guardei o
costume de passar o dia do meu aniversário na casa de minha avó. No sobrado de
minha infância. O que me alegrava era passar aquele dia de forma simples,
almoçar com a família, a tardinha comer aquele bolinho comum com café. Receber
o carinho e abraço terno de minha avó. Numa dessas coincidências da vida, foi
numa véspera de aniversário que eu tive de me despedir daquela senhora que
tanto me ensinou sobre a arte do bem viver. De certa forma, aquele momento
selaria para sempre a nossa relação tão especial. Um ciclo perfeito se
completava. Naquele dia seguinte, eu acordei cedo, subi as escadas. Ela não
estava mais por detrás da mesa. Não havia mais a mesa enfarinhada, as cascas de
ovos espalhadas, o fermento. Não houve o sorriso encantador. Não houve o
abraço. O sobrado estava vazio. Pela primeira vez eu tive medo de ter perdido
para sempre o menino que durante anos subiu aquelas escadas em busca do
carinho, do sorriso, do abraço, que revigorava, que renovava forças, que
aquecia a alma. Mas isso já não era possível, pois o menino que por anos
observou, guardando o silêncio habitual, também já havia aprendido a receita de
cor, já havia captado os ensinamentos. A própria senhora havia nos preparado
para aquele momento. Sua forma plácida, serena, respeitosa de lidar com a dor,
com a morte, não nos permitiu agir de maneira diferente. A saudade, a dor da
perda, nunca a fez paralisar. Nunca a fez perder aquela sua alegria de viver.
Sua melodia, seu canto, seu jeito de olhar a vida, ainda pairavam sobre aquele lugar.
Era preciso continuar a caminhada. Assim, no silêncio daquela manhã, parado
sobre o portal de entrada da casa, fechando meus olhos, eu pude ver o mesmo
menino de há tempos, sentado à beira da escada se lambuzando com a massa de
bolo crua, que tanto havia esperado. Foi então que meu coração, ainda que
saudoso e dolorido, se aqueceu novamente. Se o menino ainda permanecia por lá,
por lá também estava a senhora que sempre lhe sorriu e encantou.
Hoje, como de costume, voltei ao sobrado para celebrar mais um
aniversário. Na mesma casa, com a mesma família. Vovô ainda está por lá para
dar os tais beijinhos. Minha mãe, minha tia, minhas irmãs, meus sobrinhos...
todos em volta da mesma mesa. A felicidade que se resume em estar ali. Juntos.
Pra mim, essa sempre foi a melhor forma de celebrar meu aniversário. E, em meio
à alegria da celebração, é impossível não encontrá-la em meio a nós. Remontando
a cena, é impossível não vê-la entrando e saindo daquela cozinha, preocupada se
todos já tinham sido servidos. Com uma felicidade que saltava aos olhos. Porque
se a família está reunida, se tem festa, se a gente é feliz assim, ela está por
perto. Em nossos corações, uma vez aquecidos pelo seu amor, ela vive para
sempre. Eu sinto isso.
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Falar o que??? Mais um texto que nos leva à emoção! Parabéns! Sua amiga-leitora para sempre, Dani
ResponderExcluirQuinta, no turno da tarde, faço um trabalho do qual não gosto muito. Parei um pouquinho esse trabalho "chato" para ler seu blog, meu amigo. Que atitude acertada!
ResponderExcluirPor alguns minutos consegui "sair da cena" que eu estava para entrar em uma outra tão mais poética e gostosa.
Lembrei daquele final de semana em São Pedro da Serra. Tudo tão harmonioso. Apesar da apreensão com a saúde da sua avó, estávamos felizes por estarmos juntos.
O Jorge ensinando besteiras para os seus sobrinho. O Mateus repetindo as besteiras e o Lucca com aquela cara de Dedé (rs).
Depois o sepultamento da sua avó. Vi uma beleza encantadora naquele momento do cemitério. Tantas pessoas chorando a perda de alguém tão especial. E nós, seus amigos, ali dividindo um momento tão sagrado contigo.
Pode parecer paradoxal ver beleza na perda, mas foi isso que vi e guardei daquele momento.