Por
todo o período em que minha avó esteve internada, nós nos revezamos para
acompanhá-la no hospital. Aquela noite seria a minha vez de servir-lhe de
acompanhante. Durante a visita, a fisioterapeuta veio fazer sua avaliação e nos
disse que era preciso que o acompanhante conversasse bastante com ela, pois
assim a vovó exercitaria a fala. No instante em que a doutora falou isso, eu
olhei pra minha avó e disse: “ihh vó, logo hoje que é a minha vez. Não foi uma
boa escolha. A senhora sabe que eu quase não falo nada”. Vovó esboçou um
sorriso e com imensa dificuldade balbuciou: “você sempre falou o suficiente,
meu neto”. Aquelas palavras me confortaram imensamente. Minha avó me conhecia
como poucos. Nunca fui o tipo de pessoa efusiva, que demonstra sentimentos com
facilidade. Sempre fui, em verdade, muito ensimesmado, cerimonioso. Causam-me
desconforto e estranhamento até hoje pessoas muito expansivas, exageradamente
íntimas, que necessitam a todo tempo de demonstrações de afeto, de declarações,
de palavras. Sempre achei isso muito cansativo. Diante de minha avó, no
entanto, eu sempre pude ser o mesmo menino calado, taciturno, curto de
palavras, que gostava de subir à sua casa para ficar ao seu lado, em silêncio.
Às vezes à beira da cama, vendo-a dobrar roupas recém-recolhidas do varal,
outras vezes, encostado na maquina de costura, brincando com botões, carretilhas
e retalhos, ou ainda, sentado à mesa, enquanto ela catava o feijão ou
descascava legumes. Vovó não insistia em arrancar palavras de minha boca, não
me enchia de perguntas o tempo todo. O silêncio entre nós era confortável. Ela
compreendia que eu gostava muito mais de ouvir do que falar. “Meu filho, você
não é de falar muito. Só observa.” Eu arqueava as sobrancelhas e sorria. Em
silêncio.
Essa
possibilidade de estar ao lado de alguém, podendo guardar meu silêncio, sempre
me agradou. Desde menino, sempre pensei demais. A mente fervilhava, elaborava,
analisava tudo, o tempo todo. Falar, para mim, sempre foi custoso demais. Até
hoje. Trago em mim desde sempre esse desejo de silêncio, essa necessidade de
aquietar-me. Pois somente quando me calo é que ouço a voz que fala dentro de
mim. A voz daquele que, mesmo sendo eu, é um outro que mora em mim, que me
conhece de fato, que me compreende e me aconselha. Aquele que se alimenta do
meu silêncio, da minha mudez, que toma forma e habita meus pensamentos. Esse outro
que surge no exato instante em que silencio. Preciso ouvi-lo. Sinto sua falta.
Conto com ele. É ele quem me dá o equilíbrio, que me ensina a calar. Esse outro
eu é quem segura firme as palavras que desejam sair de minha boca, e realimenta
meus pensamentos, fazendo-os girar dentro de mim, transformando-os, aparando
arestas, lapidando. É ele quem grita dentro de mim, tentando me proteger dos
meus rompantes. É o tal que me faz respirar fundo, engolir a seco, e começa a
contar comigo: “um, dois, três...”, sempre que pressente que hei de ganhar mais
permanecendo calado. É obvio que nem sempre estou plácido, sereno, o suficiente
para ouvi-lo. Mas é justamente nestes momentos em que não o deixo agir é que
mais me arrependo. Falar demais sempre me faz muito mal. Assim como me
incomodam profundamente pessoas muito prolixas e verborrágicas. Gente
redundante, palavrosa, me irrita imensamente. Gosto muito de ouvir os que
respeitam as pausas, que pensam antes de falar, os que permitem intervalos.
Para mim, uma relação entre duas pessoas – seja ela qual for – atinge a
perfeição quando o silêncio não causa desconforto ou constrangimento. Ter com
quem falar é, às vezes, imprescindível, no entanto, ter alguém que consegue se
calar ao teu lado é vital. Pois é na escassez da palavra falada que os
pensamentos dialogam, as almas conversam. Meus amigos mais caros são esses que
compreendem o meu silêncio, que respeitam a minha mudez intermitente, o meu
exílio voluntário. São os que têm permissão para entrar na minha clausura, pois
são capazes de caminhar ao meu lado sem fazer barulho. São aqueles que sabem
ler os silêncios da minha cadência e não atravessam o meu ritmo. Sabem fazer
soar com exatidão tanto as notas como as pausas dos meus compassos. Entendem a
minha música.
Vovó
e eu tínhamos esse refinamento. Ela conhecia o meu silêncio. Não precisava das
minhas palavras para saber o que eu estava sentindo. Eram os nossos olhos que
proseavam, trocavam confidências. O silêncio não incomodava. Naquela última
noite em que estivemos a sós, quando lhe faltavam forças para dizer palavras,
foi com o silêncio que nos despedimos. Foi porque aprendemos a silenciar que
conseguimos trocar aquelas últimas palavras, sem dizê-las. Em pé ao lado da
cama, enquanto eu olhava seu rosto, eu pensava no quanto eu amava aquela
senhora, no quanto sua vida, suas estórias, seus ensinamentos tinham sido
determinantes na construção da pessoa que eu havia me tornado. Ela me olhava
nos olhos, como se ouvisse meus pensamentos. De novo, o silêncio. De minha
parte, o silêncio habitual, das horas em que meus lábios cerram de tal maneira,
que as palavras parecem não encontrar meios de escapar. O silêncio que minha
alma necessita pra falar dentro de mim. Dela, o silêncio resignado, da
impossibilidade física de falar. Nós ficamos um bom tempo, ali, de mãos dadas,
olhando nos olhos um do outro. Trocando nossas últimas confidências
silenciosas. Ela, então, num esforço tamanho, levou minha mão até o seu rosto e
a beijou, com carinho. Suspirou profundamente. E, então, esboçou um leve
sorriso. Apesar da tristeza que insistia em meu coração, eu intuí que se
tratava de um momento muito especial. Com aquele beijo, com aquele leve
sorriso, minha avó me dizia pela última vez o que nunca foi preciso de palavras
para dizer. Naquele instante, eu me transportei no tempo, e vi novamente o
menino que corria ao terreno baldio, catava três florezinhas no mato, corria
pra entrega-las, e saía às carreiras, envergonhado, tímido. Naquele tempo, ela
já me sorria e consentia com os olhos. O silêncio desde então prescindia das
três palavras, as mesmas que meu coração ouviu naquela noite em que nos olhamos
pela última vez. Ainda hoje, é esse silêncio confortável que ameniza a minha
saudade, pois quando silencio é que ainda sou capaz ouvir a sua voz doce a
trazer paz e conforto ao meu coração.
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Tenho buscado o silêncio. Certamente este texto me ajudará a encontrá-lo. Lindo!
ResponderExcluirImpossível calar-me diante de tão lindo texto. Emocionante. Parabéns!
ResponderExcluirInevitável emoção e comentário; Mais um texto q adorei!
ResponderExcluirMeu Deus! Como queria aprender essa lição! Quando vc escreve que é justamente nos momentos em que não deixa agir aquele que o silencia que mais se arrepende e que falar demais sempre lhe fez muito mal, que meu coração quase parou... porque é uma lição muito dolorosa para mim, que venho tentando aprender. Vc que me conhece sabe que o impulso é o de falar pelos outros...aiaiai... Mas seu texto andará comigo sempre, para que eu possa com ele recordar-me sempre da riqueza do silenciar. Obrigada amigo, mais uma vez! Primoroso! Dani
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirObrigado. VOlte sempre!
ExcluirCheguei ao blog através do link postado no Facebook , movida pela curiosidade, resolvi ler os demais textos, e me impressiona a forma como me identifiquei com este texto em questão, pois também não sou de falar e de me declarar em palavras, eu que também aparo arestas dos meus pensamentos antes de transforma-los em palavras e observo demais o que se passa ao meu redor.
ResponderExcluirLindo texto, Parabéns !