Sempre questionei o fato de sendo
Iemanjá uma divindade da mitologia africana, um orixá no culto de religiões originárias
da África, sua imagem no imaginário popular ser a de uma mulher branca, de
cabelos longos e bem lisos, a sair do mar. Iemanjá não deveria ser negra?
Alguns me dirão tratar-se de questão de sincretismo, e eu ousarei discordar,
porque diferentemente de outros orixás, que tem nos altares sua imagem
associada aos santos católicos, essa imagem da mulher branca saindo das águas
não é comum de se ver em altares das igrejas católicas.
Associei este fato a uma pesquisa
feita nos Estados Unidos com crianças negras, que diante de bonecos brancos e
negros, eram questionadas a respeito de coisas como quem era a mais bonita, a
mais boazinha, a feia, a má. “Por que você acha essa a mais bonita?”,
questionou o entrevistador, ao que a criança negra respondeu: “Porque ela é
branca e tem os olhos azuis!”. É no mínimo intrigante o resultado da pesquisa.
Para mim, demonstra o quanto a sociedade incute padrões na cabeça do indivíduo
desde muito cedo, e como a gente é permissivo com relação a isso. Lembro-me de,
quando muito menino, ter uma vizinha negra e outra loira, adorava brincar com
as duas. Meus tios viviam me enchendo a paciência com aquelas coisas, fulana é
sua namorada, vai casar com ela, etc. Como é nítido pra mim hoje a diferença no
tom da provocação em relação a minha amiguinha negra e a minha amiguinha loira.
Adultos despertando nas crianças coisas que elas mesmas nunca levam em
consideração, quando na verdade deveriam ensinar desde cedo o respeito à
diversidade, às diferenças.
Há alguns
anos, eu assisti a um espetáculo teatral chamado Avenida Q, que é um musical da Broadway, adaptado pelos
diretores brasileiros Charles Möeller e Cláudio Botelho, que tem de diferente,
inicialmente, o fato de ser um musical envolvendo bonecos. O espetáculo foi fabuloso.
A interpretação dos atores, a simbiose
entre estes e os bonecos, que são, verdadeiramente, os atores principais do
espetáculo era mesmo de impressionar. Fico aqui agora tentando me recordar de
alguns momentos da peça e o que me vem à cabeça é a imagem dos bonequinhos,
como se eles tivessem ali sozinhos em alguns momentos, apesar da manipulação
ter sido realizada completamente às claras. Simbiose mesmo, no sentido
biológico real, “relação mutuamente vantajosa entre dois ou mais organismos vivos de espécies diferentes”. Porque aqueles bonecos tinham vida! Arte pura! Com
preciosismo, zelo, cuidado nos detalhes. Só vendo mesmo pra entender.
A peça tratava basicamente de relações humanas,
da plurarilidade, da diversidade e, principalmente, da presença do preconceito
nessas relações. E, de certa forma, da hipocrisia da sociedade que se finge de
politicamente correta pra esconder as misérias humanas. A peça trata com humor
extremamente sutil e inteligente a nossa capacidade de achar graça da desgraça
alheia – e aqui cabe ressaltar o enorme talento dos artistas brasileiros em
adaptar o estranhíssimo humor americano, ou inglês, da montagem original à
nossa realidade brasileira, carioca.
É realmente uma coisa muito esquisita. Não
sei se é típico do brasileiro, mas é, no mínimo, interessante essa nossa
tendência a fazer piada da desgraça dos outros e até da nossa própria. É sempre
muito bom, quando a gente está na merda,
encontrar alguém que esteja numa merda
pior ainda. Como se costuma dizer hoje em dia, ‘fulano tá todo cagado, mas
continua rindo!’. Eu mesmo, quando quero acabar com a alegria dos meus alunos,
que riem quando tiram notas baixas, os chamo de hienas: estão na merda, mas não param de rir. Já
perceberam, por exemplo, quando morre alguém famoso, a quantidade de piadas de
humor negro (uma expressão nada politicamente correta!) que surge. ‘O que é o
que é? Todo enrugadinho, branquinho, de olhos azuis e mora no fundo do mar?!’
Quem é que nunca riu de piada de preto, de viado, de mongolóide, de retardado,
de aleijado, de português, de loira, de gordo? Ou melhor, de afrodescendente,
de homossexual, downiano, deficiente mental, deficiente fisico, pessoa de
nacionalidade lusitana, mulher de cabelos tingidos, obeso, para ser
politicamente correto. Que é o jeito que a sociedade, muita vezes hipócrita,
acaba por utilizar, de forma a amenizar com palavras mais elegantes, o preconceito,
a intolerância que, na essência, nas entrelinhas, continua presente, indepentemente
de expressões linguísticas mais rebuscadas ou não.
Mas é realmente impressionante como o nosso
preconceito é tão intrínseco, tão espontâneo, na maioria das vezes. Esta semana,
por exemplo, vi no youtube, um
humorista negro, fazendo o povo rir com aquelas típicas piadas de negro, e uma
senhora então, ele conta, no fim do espetáculo diz a ele: ‘achei muito legal
essa sua capacidade de rir do próprio defeito’.
Ou então aquelas frases típicas: ‘pretinho de alma branca’, ‘ele é viado, mas é legal, respeita, não fica
dando em cima’, ‘é maconheiro, mas é gente boa!’, ‘fulano é negro, mas adora
uma lorinha’, ‘ah, para com isso, isso é coisa de viado!’, ou ainda, ‘é preta,
mas o cabelo é bom’. Ou então aquelas coisas do tipo: ‘mas ô neguinha (ou
criola) abusada!’ Como se atitudes abusadas fossem mais absurdas quando feitas
por negros do que por brancos.
Faz-me lembrar da história que uma colega
professora me contou, dizendo que, certa vez, ela disse pra uma amiga, negra,
que ela era a mulher mais bonita que ela conhecia, e a tal amiga ficou muito
feliz, e surpresa ao mesmo tempo, pois na maioria das vezes, as pessoas dizem:
‘você é uma negra muito bonita’, quando na verdade, querem dizer: ‘você, apesar
de ser negra, é muito bonita’. Já que ninguém diz: 'você é uma branca muito
bonita'.
Bastante ilustrativo, também, naquela noite do
teatro, foi quando estávamos caminhando para a sala de espetáculo, no shopping
da Gávea, num hallzinho do shopping, dois rapazes sentados num sofá, um com o
braço sobre o ombro do outro, com atitudes de carinho mútuo, chamavam a atenção
dos passantes. Duas senhoras, distintíssimas, super bem vestidas, com cabelos
super laqueados, olharam a cena, se entreolharam e disseram: ‘meu Deus, que
absurdo, onde é que nós estamos!’. As distintas senhoras entraram no teatro.
Fico imaginado o que elas acharam da peça, que começava justamente tratando do
preconceito ao homossexual. E depois ao negro, ao estrangeiro, ao judeu, ao peludo,
ao viciado em pornografia da internet, etc, etc. Talvez, quem sabe, fossem
elas, as tais solteironas escrotas,
pilares da sociedade, citadas na
peça. Senhoras da Gávea, mas com mentalidade suburbana, como diriam os
preconceituosos.
A montagem acabou por me levar a refletir
quantos erros ainda cometemos quando nos prendemos a certos padrões impostos
pela sociedade, muitas vezes hipócrita e ignorante, ou pelos costumes,
pela tradição, etc. Até mesmo por leis e regras rígidas e, a princípio, bastante
coerentes, ditadas por pessoas inteligentes,
sensatas, mas que se apegam a uma
verdade – com v minúsculo – e
deturpam, muitas vezes de forma brilhante e embasada, a Verdade maior e
absoluta que é o Amor, que, independente, de credo religioso, cor da pele, orientação
sexual etc, deveria ser a essência de cada ser humano.
O que realmente é importante numa relação
humana? O que torna realmente essa relação mais duradoura? A cor da pele, a
preferência sexual, a orientação religiosa ou a tolerância, a paciência, a
capacidade de conviver com as diferenças ou idiossincrasias de cada um? O
respeito ao próximo, talvez seja a receita. Cada um de nós é único e conviver é
uma arte. Penso que o sucesso de uma
relação não está vinculado com a maior ou menor quantidade de defeitos do
outro, mas com o nosso talento em lidar com eles, ou seja, o exercício da
compreensão. Cada vez mais, estou certo disso. O sucesso das minhas relações
familiares, amorosas, de amizade etc, nunca esteve no fato de meus pares serem
brancos ou pretos, gordos ou magros, heterossexuais ou homossexuais, católicos,
protestantes ou espíritas, mas sim na nossa capacidade mútua de conviver com
nossas manias, de compreender nossas idiossincrasias. Nunca me preocupo realmente
com esses padrões. Não que eu não seja uma pessoa preconceituosa. Nós somos
naturalmente assim. Mas tento não guardar esse preconceito comigo, mando pra
bem longe, todos os dias, todos os momentos.
Sinceramente, penso, que ao invés de trazer
informações sobre cor da pele, sexo, naturalidade, nacionalidade, etc, seria
bem mais útil em nossa carteira de identidade informações do tipo: levanta a
tampa do vaso pra urinar? Aperta o tubo de pasta de dentes no meio? Deixa a
toalha de banho molhada em cima da cama? Come fazendo barulho? Cutuca quando
fala? Ronca ao dormir? Gasta dinheiro à toa? É sovina? É preguiçoso? Irritado?
É honesto? Leal? Confiável? Enfim, coisas realmente importantes na convivência
humana. Porque defeitos e qualidades, integridade ou mau caratismo, dignidade
ou falta de vergonha na cara, senso de justiça ou falta de escrúpulos, não são
privéligio nem de pobre nem de rico, nem de preto nem de branco, de judeu ou
árabe, católico ou protestante, de homem ou mulher, de bicha ou sapatão.
Dependem, mais do que qualquer outra coisa, da orientação educacional, dos
ensinamentos de pai e mãe, da criação familiar, do que da cor da pele ou da
opção – ou, melhor, orientação – sexual de cada um. Não é o fato de termos
olhos castanhos, verdes ou azuis, ou até mesmo o fato de termos a capacidade de
enxergar, que nos faz ver o mundo de forma diferente, com maior ou menor
clareza, mas sim os ensinamentos e experiências que acumulamos no decorrer da
vida. É tão comum vermos pessoas cegas, apesar da plena capacidade física de
enxergar.
O importante é a busca de um rumo na vida, como
ressalta o texto da referida peça. Um ideal nobre de vida, que nos faça
enxergar o que realmente importa nas pessoas. O espetáculo a que me refiro, deixou-me
a imagem de que somos responsáveis uns pelos outros. E que o nosso sucesso
depende do sucesso do outro, ou seja, da dedicação, do cuidado que prestamos
àqueles que carregamos nos braços, nossos amigos, nossos semelhantes, nossos
pares. Como o ator ou a atriz, que dão vida aos bonecos, e nos confudem a ponto
de questionarmos quem conduz quem nessa empreitada. Literalmente, a arte de
conviver.
● ● ●
Escrevendo esse texto, na época, acabei por me
lembrar de meus amigos todos, brancos, negros, morenos, mulatos, hetero,
homossexuais, católicos, crentes, espíritas, ateus. Lembrei-me de uma amiga em
especial, que em certa época da minha vida foi a razão da alegria de meus dias,
a amiga de todas as horas, da alegria, da tristeza, da saúde, da doença.
Crescemos juntos e nos tornamos seres humanos especiais juntos. Naqueles dias,
ela havia acabado de dar à luz mais uma filhinha, que sendo negra, como ela e o
marido, deram-lhe o nome de Maria Clara, para espanto de muitos, que acharam,
no mínimo, inusitado o fato de uma menina de pele escura, chamar-se Clara. Mais
um feliz e corajoso ensinamento. Pois a claridade, a transparência, a clareza
de uma pessoa, não está nem no nome nem na cor da pele, mas no brilho e na Luz
que emana do coração desse ser humano. E, sendo essa Maria Clara, filha dessa amiga
especial, que iluminou a minha vida tantas vezes, tem tudo pra se tornar também
um ser humano iluminado e que ilumina! E que assim seja.
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