Há poucos dias, assisti a um vídeo na internet por indicação de uma
amiga. Um gatinho invade o espaço de um crocodilo em um jardim zoológico. O
crocodilo se encontrava à beira de um lago, alimentando-se, o gato se incomodou
com o fato e partiu pra cima do crocodilo, dando inúmeras patadas na cara do imenso
réptil, que recuava, voltava a comer, enquanto o gato insistia em bater nele,
até que, em certo momento, o crocodilo se recolheu pra debaixo d’água, desistindo
da comida. As pessoas acharam incrível a coragem do gatinho, que enfrentou sem medo
o crocodilo, colocando-o pra correr. Assim que vi a cena, me perguntei: quem é
o verdadeiro herói desta história? Pois, na minha visão, surpreendente foi a
atitude do crocodilo. O gato não passou de um inconsequente, que deu sorte de
ter encontrado um crocodilo diferente, porque se o crocodilo o tivesse abocanhado,
seria perdoado por todos nós, afinal de contas essa era a atitude que qualquer
um esperaria do réptil irracional. No entanto, para surpresa de todos, o animal
parece ter vencido seu instinto selvagem e recolheu-se ao fundo do lago.
Inicialmente, pensei em escrever algo sobre esta atitude surpreendente do
crocodilo, do quanto às vezes escondemos também um lado animal, instintivo e
selvagem dentro de nós, que diante de certas situações, quando somos tentados a
agir de forma agressiva, optamos pela não violência, até porque, diferentemente
do que se espera de um crocodilo, atitudes sensatas deveriam ser comuns aos seres humanos inteligentes. Porém, acabei sendo levado à outra reflexão,
quando li no jornal a história ocorrida com o jovem, Vitor Suarez Cunha, de 21
anos, morador da Ilha do Governador, aqui no Rio de Janeiro. O Vitor, assim com
eu e a grande maioria das pessoas, deve ter aprendido na escola a temer
crocodilos, pois como todo animal selvagem, os crocodilos agem por instinto de
proteção e atacam quando se sentem ameaçados. O Vitor certamente não seria
inconsequente como aquele gatinho que invadiu a jaula do crocodilo e
importunou um animal sabidamente violento, implacável, escravo de seu instinto
selvagem. Dentre outras coisas, o Vitor deve ter aprendido também na escola que
seres humanos são animais classificados como racionais, pois são dotados de inteligência,
livre arbítrio, isto é, podem optar por controlar seus instintos animais, portanto
não devem agir de forma impensada. Diferentemente de crocodilos, os seres
humanos, em princípio, são seres capazes de discernir, elaborar pensamentos,
tomar atitudes sensatas. E, além disso, o jovem Vitor, pelo que parece, deve
ter sido educado por uma mãe zelosa e preocupada em formar um cidadão solidário, preocupado com o próximo, digno e consciente de seus deveres e direitos, capaz de se
indignar com a injustiça e com a maldade gratuita. Por isso, a ele pareceu muito
natural, ao ver cinco rapazes tão jovens quanto ele espancando um
morador de rua, reagir e tentar intervir de forma a evitar que os tais jovens
ferissem o mendigo. No entanto, talvez o que Vitor não soubesse é que, assim
como os crocodilos, os seres humanos podem ter atitudes também surpreendentes,
inesperadas a um animal que se diz racional, atitudes completamente distintas
daquelas que ele, Vitor, aprendeu que todo ser humano deveria ter. Os tais
rapazes se incomodaram com o fato dele estar se metendo naquela história,
derrubaram o Vítor no chão e deram inúmeros chutes em seu rosto. E só pararam
porque um amigo do Vitor se jogou por cima dele na tentativa de protegê-lo e
evitar uma tragédia ainda maior. O rapaz espancado teve que passar por uma
cirurgia de mais de quatro horas, fraturou vários ossos da face e ainda pode
ficar com sequelas em uma das vistas. Dois dos rapazes foram presos, um terceiro
é considerado foragido e os outros estão sendo investigados. Quando indagado do
porquê daquela atitude violenta contra o tal mendigo, um deles respondeu: “meu
pai vai caminhar na praia amanhã e não iria gostar de ser incomodado por isso.”
Então, eu me pergunto: que mundo é esse em que crocodilos não engolem gatos que
batem na sua cara e seres humanos espancam violentamente, com o intuito de matar,
mendigos ou jovens que se indignam com este tipo de violência gratuita? Como
uma sociedade pode produzir jovens capazes de cometer tamanha atrocidade? Jovens
de classe média alta, a princípio, estudados, que tiveram ótimas oportunidades
na vida e que decidem espancar mendigos, empregadas domésticas, prostitutas, homossexuais.
Que tipo de educação tiveram essas criaturas? Por que se acham no direito de
resolver as coisas dessa maneira? Por outro lado, é de se surpreender também como
ainda é possível educar, nesta mesma sociedade, seres humanos como o jovem
Vitor, capazes de se indignar, de se incomodar a ponto de arriscar-se para
defender um desconhecido, um desvalido qualquer, um mendigo. Se ainda fosse para
proteger um cachorrinho peludo, fofinho, vá lá! Eu até entenderia. Mas um
mendigo, Vitor? Quantos teriam esta atitude? Quem de nós não usaria a desculpa de que hoje em dia a gente não pode se meter, porque acaba sobrando pra gente?
Quem de nós não seria indiferente? Afinal, mendigos fazem parte da paisagem, como postes, bancos de praça, latas de lixo. A gente logo se acostuma. A verdade é que, assim como o Vitor, não
podemos ficar inertes às mazelas do mundo, temos que nos indignar com a
injustiça, reagir contra a maldade. Temos que clamar por justiça. Cobrar do
governo a aplicação da Lei, para evitar que pessoas como o jovem Vitor, que
deveriam ser a maioria em nossa sociedade, tenham que se expor a este tipo de crime,
por reagirem com indignação à violência gratuita praticada contra qualquer ser
humano. Parece óbvio que qualquer animal, seja ele biologicamente classificado
como racional ou irracional, que não consiga controlar seus instintos
assassinos, que ataque pessoas na rua etc, deve ser preso, enjaulado. Crocodilos
que matam até podem ser perdoados. Seres humanos que espancam seres humanos, não. Nada justifica. Que sejam, portanto enjaulados, como qualquer animal selvagem
que invade a cidade. Ou será que já estamos vivendo numa selva e nem nos demos
conta?
A triste verdade é que poucos enxergam o outro; Ainda estão vivendo a fase do egocentrismo. Como se no mundo alguém pudesse ou conseguisse viver sozinho.
ResponderExcluir"Fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratanto de negar com a boca".
José Saramago